6 Poemas de Olga Godenberg (Costa Rica, 1941)

| | ,

Curadoria e tradução de Elys Regina Zils

Olga Godenberg Guevara (Costa Rica, 1941). Estudou Pedagogia, Literatura e Ciências da Linguagem na Universidad Nacional. De forma autodidata, aprendeu elementos das ciências sociais que a levaram a atuar como educadora e pesquisadora na Escuela de Planificación y Promoción Social da Universidad Nacional. Da mesma forma, realiza pesquisas para a Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) e para o Informe sobre el Estado de la Nación. Faz parte da equipe Fundador de la Defensoría de los Habitantes de la República e ocupa o cargo de assessora de Direitos Humanos da Mulher no Instituto Nacional de las Mujeres e na Assembleia Legislativa. Embora escreva poesia desde a adolescência, só depois da aposentadoria é que publicou o seu primeiro livro, Itinerarios al Margen, Primeiro Lugar no Concurso de poesía, Editorial UCR. Publicou mais dois livros Sombra que soy, Editorial Germinal, 2016 e Espirales del silencio, Encino Ediciones, 2022. Poemas de sua autoria foram incluídos no livro Mujeres poetas de Costa Rica 1980-2020, Antologia Bilíngue.


TERAPIA

Falemos sobre a dor,
essa entidade sombria, soterrada,
amordaçada no fundo da caverna
onde costumo me esconder de mim mesma
vestida com discursos
e de insígnias alheias.

Falemos, então,
do umbigo profundo das águas,
dos nós farpados
que é preciso superar
porque não tenho mãos
para desatá-los,
não aprendi os passos
nem o ritmo da dança
e tornaram-se desajeitados e perdidos
meus ouvidos, meus pés e meu desejo.

Falemos do orgulho e da vergonha,
do terror de nos olharmos no espelho
e ver que se desmoronam
as paredes decoradas e as máscaras,
se estragam as guarias, os jasmins,
e eu permaneço muda.

Falemos.


DON DO ESQUECIMENTO

Os muros sempre crescem mais, mais altos,
mais grossos, mais sólidos, mais surdos.

Sombras caladas unem
cal e cinzas.
Semeiam trechos e trechos de argamassa.
Guardam sob a língua seca,
em nichos escondidos,
um silêncio sem portas.

Afogados no fundo
de almofadas fofas
os gemidos de parto,
se multiplicam por milhares
sem jamais pronunciar uma palavra.

Se eu pudesse estabelecer
a ordem do feitiço.
Se a chave finalmente me fosse revelada.
Se me fosse concedido o talismã,
a graça, o sonoro artefato da criação,
a medida e o ritmo,
a padrão que estremece e dá sentido.

Se eu conseguisse ao menos soletrar
o poder criados.
Se silenciosamente chegasse a sussurrar
algum prodígio arcano,
uma oração, uma substância
que pudesse nomeá-las: —Sombras!

É preciso dizê-las
e deixá-las ir,
dar à luz a campo aberto.

Nenhuma quer voltar
coberta de fracasso
sem poder dar à luz a sua própria sombra.

Sei que vão assediar pela esquerda,
do lugar onde estava o coração
batendo seus tambores.

Ou, com o crepúsculo,
tentarão chegar vestidas, veladas,
desse ponto cardeal ubíquo
na direção da qual eu mesma
pronunciei os disparos do perdão,
declarei o extermínio e esquecimento.

Demolido o adobe dos muros
as sombras não têm mais
onde se abrigar.
Giram, loucas de luz,
entre o cascalho branco dos pátios
e o alto azul do céu
sob um sol inclemente.

Não há mais nada a dizer.
Nenhum espelho afoga as lembranças.

Vão feridas de morte.


EU, PEIXE

Sou o cristal que flui com o rio.

Sou a gota que vai contra a corrente.

Sou de água.

Sou esse peixe que olha de soslaio
ao peixe que sobe,
que olha de soslaio
para o peixe que desce.

Sou o peixe caído do lago,
como o anjo
o dia em que o pescaram
em pecado.


DEUSA MÃE

De milênios remotos
caminho para o incerto.
Vim para desenterrar o tempo fóssil,
a pedra onde dormem os vestígios,
a memória cifrada do desígnio total,
uno e diverso de vida,
a memória inocente
—química, elementar— de um lugar no meu cérebro
onde sou a garça majestosa,
a gazela,
a fêmea do leopardo.
A fêmea.
A mulher.

Trago comigo a serpente,
as algas e os peixes oceânicos,
o leve esporo,
a espiga que debulha e balança ao vento,
a voluptuosa essência da orquídea.

Vim procurar sinais de grãos e sementes,
insetos e moluscos,
no trajeto das andorinhas,
e na violência da mordida
nos passos cruéis da pantera
à espreita do cervo e do potro.

Vim rastrear a pegada que delata
a pétala sutil
na carícia de aroma maduro,
no incenso, no pão,
na caçarola cotidiana,
nos detritos,
o lodo, os pântanos.

Vigio o horizonte.
Investigo minuciosamente o território
e nomeio seus confins
à medida que declina ou cresce a íris na estrela.

Os números, acontecem em meus dedos.
Levo registro dos ciclos
em que se alternam a hora do crepúsculo,
as faces da lua,
minha vontade de rir,
meus suspiros de sombra,
as marés, os ventos e as chuvas.

Antecipo a chegada dos frutos,
a cor do palheiro
onde os pássaros fazem seus ninhos,
o tempo das árvores nuas,
o tempo do gelo
e das grandes águas.

Alcanço os mistérios e decifro a luz.

Contorna-me o fogo da fogueira.
Minha estirpe está na mistura do pigmento
que decora na caverna
o dessangrado lombo do bisão.

Em meu ventre guardo a semente do homem.

Multiplico sua força.
Meu sangue abriga o signo sagrado da espécie.

Aqueço meu peito
embala a canção,
criva a luz,
tempera o uivo dos medos,
provê leite e mel.

Inefável,
a vida da vida
habita-me e possui-me.

O cedro pulveriza o seu perfume.
Levante o pantanoso rosado voo.
O crepúsculo respira.
Tudo se cala.


VICIADA IMPENITENTE

As águas correram

Muitas luas crescentes
iluminaram
e minguaram
até alcançar a ser
a Lua Nova

É verdade que então
deixei-me seduzir

Tua voz se me oferecia
doce e pura
para invocar a luz
o frescor do vento
o fluir da cor
a música do fogo
e fazer tudo vibrar
entre meus lábios
na ponta da minha língua

Que tentação
teu caudal generoso
tua opulência quente
os laços que bordavas
próximos ao sussurro

Alucinar contigo
fios em tuas agulhas
rematava um apetite
tão postergado
tão ávido e urgente
que ignorei os sinais

o indício letal

o veneno escondido
suculento

da bile, da cicuta e da madeira
na qual purgo o pecado
de braços abertos

e tu fora de mim

Colarinho apertado
em minha garganta

Naufrágio silencioso

Palavra destemida.


O GATO DE SCHRODINGER

Lá dentro bem no fundo
                inacessível
há muito frio
                convulso, desatado
Há gelo profundo
que não é gelo
porque não existe um fogo
capaz de derretê-lo
em líquido transparente
ou derrame viscoso
do qual possa colher
alguma amostra
analisá-la
determinar sua essência
outorgar um espaço
e um tempo
à sua natureza

É algo assim
como uma escura fossa
                    umbral de incerteza
e onde se olhas
se puder observar
é impossível
saber qual é o lugar
onde a dor se assenta,
quando e quanto dói

E se reconheces onde
em que momento
quais assuntos e suas relações
revelam o mistério
o frio absurdo
o incrível terror
a inextinguível fossa
a imagem transmutada
escapa
                      te deixa na solidão
                      mudez
                      surdez
                      escuridão
                      dor
sem sequer iluminar
alguma lágrima.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!