Curadoria e tradução de Floriano Martins
Lourdes Aparición. Nasceu em Apurímac em 1993. Migrante, ativista, psicóloga e gestora cultural comunitária. Publicou uma plaquete intitulada Warmi. Foi convidada a participar de diversos eventos literários nacionais e internacionais, e alguns de seus textos integram diversas exposições literárias no Peru, Bolívia e México. É membro fundador do Grupo Cultural Emergentes del Mar (Pisco, Ica). Recebeu Menção Honrosa na 11ª edição do concurso El Poeta Joven del Perú (2020) com sua coleção de poemas Apacheta, publicada pela Hipatia Ediciones (2021).
MÃOS DE CAMPONESA
Eu tenho uma parte deste país
percorrendo meu corpo.
Sou um morro que vive olhando para meu avô
uma chuva que cai
quando minha avó retorna a este abrigo.
Eu sou o milho que cerca a tempestade de granizo
os papagaios procurando um furo na árvore
as aranhas construindo um império
na cabana inerte.
Eu sou uma parte desta cidade
que consome suas filhas.
Os círculos infantis
e as sopinhas de flores que as meninas preparavam
que me jogam nessa tristeza
que se apega aos meus olhos cansados.
Falta uma parte deste país
em meu útero.
Eu não queria ter nascido nessa avalanche
não queria ter voz
nem braços
nem pernas.
Eu me quebrei todos os dias querendo ser a flor
daquela estrada que vê os corpos se juntando
que vê os corações brotando no inverno.
Eu me deito nesse pasto
e engulo saliva para levantar essa pedra
e carrega-la até que eu me convença novamente
que tenho uma parte deste país
dormindo nessas mãos de camponesa.
PACHAMANCA
Eu enterrei meu sexo
cinco metros abaixo
cobri com folhas de bananeira
as mesmas que plantei quando criança
aquela criança que minha mãe não esperava
aquela que por uma semana acreditaram ser um homem
aquela criança que não teve infância
porque a mochila era uma bolsa preta de vinte centavos
e a felicidade se resumia em colecionar aranhas em uma caixa de fósforos
todas as tardes na chácara
Olho ao meu redor
e as pedras caem
como a chuva em Abancay
enterram a minha voz
Sou menos que um cão largado na chácara Benavides
agonizando sob os espinhos
que cruzam suas patas
sua fome
seu focinho preto e sujo
Não reconheço quem rodeia este corpo
prestes a enterrar
quem dera tenha bom cheiro a minha dor
três horas depois
e lhes faça sentir
que suas vidas
são
uma resposta
da sociedade que tanto criticam.
O GRITO DA CHALEIRA
Rezamos a todos os santos
para que o milagre se cumpra
poder descansar antes de morrer
parar no jardim de gerânios
quando o sol prolonga o dia
não querer ser mais que esse pó.
Deixarei de levar água até a cozinha
ao ficar sem família
e em cinzas me converterei
no fogão de todos os dias
como a madeira inútil
que arde como a arte em minhas entranhas
como o grito da chaleira
assim grita a poesia
na minha cozinha
na minha casa
neste espaço chamado vida
onde é possível dormir até as três da manhã
e onde nós mulheres
somos a fumaça que se espalha pelo céu.