3 Poemas de Lourdes Vázquez (Porto Rico, 1949)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Lourdes Vázquez (Porto Rico, 1949). Poeta, narradora, ensaísta, tradutora, editora e bibliotecária emérita da Rutgers University. É autora de diversos livros de contos, poesia, biografia e romance. Foi premiada com o prêmio Juan Rulfo de Cuentos (França) pelo conto “La Estatuilla” na categoria: Mundo Literário (2002). Uma seleção de sua poesia foi publicada em italiano: Appunti dalla Terra Frammentata (Edibom, Edizione Letterarie, 2012); bem como a crônica/ensaio Os Arquivos do Tango (Edizione Arcoiris, 2016) e a plaqueta: Cibeles que sueña=Cibele che sogna (Asiray: 2020). Alguns de seus trabalhos foram traduzidos para o inglês pela Bilingual Press, Arizona State University. A saber: Not Myself Without You (2012) que faz parte da lista anual Top Ten New Latino Authors To Watch e Bestiário: Poemas Selecionados (2004) Menção Honrosa, Prefácio Reviews Book of the Year Award, (EUA). Seus livros mais recentes são Fugas (Furtivas: 2023), Puro Paisaje (La Criba, 2023), Orígenes de lo eterno y así las cosas (Verbum, 2020), Un enigma esas muñecas (Torremozas, 2015), que recebeu Menção Honrosa Prêmio Paz 2014 para Poesia (EUA), e Adagio con fugas y ciertos afectos (Verbum, 2013). Ela foi membro do Painel de Literatura da Fundação para as Artes de Nova York, Urban Artist Initiative; Júri do Prêmio Literário de Ficção BorderSenses e da Série Nacional de Poesia/Feira do Livro de Miami, Prêmio Paz de Poesia.

SOU UMA PONTE ESTREITA DE PEDRAS E SONS

Aprender rapidamente uma língua: investigar os seus ritos e segredos – para o imigrante, para a mulher traficada, para a pessoa em fuga, para a pessoa afetada por um sistema colonial ou neocolonial – é como cambalear em uma cisterna sem tocha. São tantas histórias íntimas de avôs e avós, de pais e mães com seus filhos ou de órfãos que se aventuraram.

Muitos outros sofreram com o abuso de uma língua diferente quando o corpo imperial exigiu o seu novo sinal: difícil de traduzir, difícil de manusear, porque uma única palavra obriga a retirar-se e a sentar-se no banco da dúvida, enquanto tudo se move lentamente, muito lentamente ao seu redor. Incapaz de entender, seu pequeno cérebro acelera o movimento dos neurônios, buscando a chave relevante, a palavra certa na sua gíria para poder transformá-la no símbolo correspondente:

MUDANÇA DE CÓDIGO.

É assim que nos equilibramos neste país e nos seus milhares de milhões de territórios, reinterpretando a linguagem oficial, imaginando uma alquimia que nos ajuda a compreender o Outro. Algum deus da nossa infância que decifra o sinal, a caverna de onde ele vem, a luz que o precede.

Se eu pegar a minha língua original, a língua materna, a língua não só minha, mas dos meus antepassados, posso cavalgar neste signo estrangeiro e correr pelas montanhas com as borboletas amarelas, até encontrar o som e a dança do meu ritmo. A decoração é apenas a metáfora ou o símile e também o signo do Outro. Com este tempero, muitos dos meus textos nascem sempre relembrando a fauna e a flora originais daquele arquipélago: testemunho de amor e também de terror.

Recuperando diariamente a unidade da areia, transitamos entre duas línguas, duas culturas. Sou uma estreita ponte de pedras e sons na qual meus descendentes vêm beber dos significantes. Dos seus significados. Abro e fecho meu corpo: aquela ponte. Abro e fecho minha casa: a pedra. Abro e fecho o vento: o som de cada sílaba.

Duas línguas fraturadas no seu centro para dar lugar à onipresença do signo inédito. A fratura enriquece o pensamento. O pensamento elucida a forma, o som, a sílaba, a sintaxe. A mão traça a representação do seu significante na superfície do papel e fala do carinho, da raiva, do medo do amor tirado. A confusão que sempre surge na entrada de uma ponte de vidro.

O cansaço da viagem, de mãos dadas com a coragem que ainda resta. Os braços firmes de ambos (bilíngue), as notas musicais do instrumento (multilíngue) e com esta nova mitologia me transformo em uma entidade visceralmente livre e sem claro-escuros.

LOURDES VÁZQUEZ


CLASSIFICADO

Meu marido e eu perdemos sua mulher. Revisitamos o enchimento dos travesseiros e as frestas do colchão desta nossa cama abençoada. Observamos meticulosamente cada retrato deste casal feliz. Ouvimos as gavetas da cômoda, os armários de roupas e alimentos, as rachaduras na madeira do chão e a haste de cada guarda-chuva. Como se não bastasse, o café da manhã com leite é mexido ad infinitum, para que sua delicada essência não surja inesperadamente. Inútil. Decidimos colocar um anúncio nos classificados.


O INSETO

Qualquer dia um inseto aleatório resolve morar em tua cabeça sem pelos e, quando chega a hora, te olhas no espelho e descobres o pequeno animal pulando de fio em fio, quase feliz e uma dúvida intensa te assalta. O fato de que a qualquer momento não lubrifique mais o desejo, ou seja, a funesta esperança. Essa mania que nós mulheres temos de ser apaixonadas e invejosas te consome e te dedicas a ouvir jazz o inverno todo com a raiva de um fã e te tornas especialista em lidar com as categorias do blues, o ritmo do bebop e o capricho por um jazzista de nádegas cobiçadas te devora, porém esqueceste que teu cabelo está caindo e mais de um animal cobiça a tua calvície.


BOLERISTA QUE CANTA O AMOR

A história da mulher que é esfaqueada pelo marido. Sua amante esfaqueada no estacionamento do condomínio. Já a mulher sem marido, sem amante e este corpo cheio de feridas, percorre poças de sangue diante do pânico dos vizinhos. O corpo ferido de vermelho, dedica-se a copular com o amor, enquanto escuta na rádio a voz triturada da bolerista cantar sobre a paixão – essa substância viscosa – e narra a história da mulher martelada quarenta vezes pelo marido, enquanto se olhava no espelho. O espelho sombrio declarado evidência importante neste julgamento. O espelho já cansado de tanto interrogatório. O espelho melancólico com seu cristal às escuras. A bolerista, de cetim justo e corpo perfeito, canta sobre o medo, emoção intransponível e encanta nosso ouvido com a história de: a mulher e seus filhos embutidos em uma caixa de metal. As portas hermeticamente fechadas. O helicóptero que gira e gira em sua ronda noturna. A mulher que já não se lembra há quantos dias está morta, sem entender porque acabou sendo um cadáver, apesar de ter concordado em ser mutilada nas suas partes mais queridas. A mulher que decide morrer, cantando a própria morte. O helicóptero e sua voz que alteram a distância.

A bolerista, boquilha na boca e vestido ousado, costas atrevidas, que canta sobre o medo da paixão de dois amantes, enlouquecidos de delírio. Sobre um país, uma região tatuada em sua pele. Este país tão apaixonado.

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