2 Poemas de Nicole Cecilia Delgado (Porto Rico, 1980)

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Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils

Nicole Cecilia Delgado é poeta, tradutora e desenhista de livros. Em 2016, fundou La Impresora, um estúdio editorial especializado em edição independente de pequena escala. Seus livros mais recentes incluem Apenas un cántaro: Poemas 2007–2017 e Periodo especial, que explora as imagens socioeconômicas espelhadas entre as Grandes Antilhas à luz da atual crise financeira de Porto Rico. Delgado é amplamente considerada uma das principais poetisas porto-riquenhas de sua geração e uma agente cultural que reúne artistas, ativistas e escritores de todas as Américas. Publicou mais de vinte livros de poesia em vários formatos e tiragens e participou como artista convidada em vários fóruns internacionais, como a Feira Internacional do Livro de Havana (2012, 2014), a Feira Internacional do Livro de Guayaquil (2010), o Festival de la Palabra (Porto Rico, 2012), Latinale (Berlim, 2012), Under the Volcano (Tepoztlán, 2018) e festivais de poesia, residências artísticas e exposições em Porto Rico, Estados Unidos, México, Guatemala, Panamá, El Salvador, Colômbia e Chile. A sua obra aparece publicada em diversas revistas literárias e digitais. Alguns de seus textos foram traduzidos para o inglês, catalão, galego, polonês, alemão e português. Além disso, trabalhou em colaboração com vários projetos de publicação independente nos Estados Unidos e na América Latina.


[ACONTECE QUE ME CANSO]

acontece que me canso de ser mulher
acontece que entro nos escritórios
diminuída, estereotipada
que ando pelas ruas como se não existisse
acontece que me canso de ser sombra, de ser cota
estar sempre atrás da cortina
e não existir nem nas canções gerais
acontece que me cansa repetir o nome
que é intercambiável pelo sobrenome
acontece que me agonia ter que dar explicações
acontece que me enfurecem os olhares
acontece que me gasta ser vendida
acontece que me canso dos meus quadris
de ser peitos gigantes na televisão
de precisar de um pseudônimo tamanho três
acontece que me canso de parecer fraca
e que sussurrem nas varandas se estou sozinha
o cheiro de cebola me faz chorar alto
e só quero uma pausa de panelas e cloro
só quero não ser lençol, esfregão ou vassoura
nem pirâmides de roupas sujas amontoadas
acontece que me canso de ser mulher
acontece que me canso do meu cabelo
das saias, dos trajes, das flores
das cores pálidas
dos brincos e pulseiras
acontece que me canso de ser mulher
mas talvez
se eu fosse homem não me cansaria


[AGORA]

agora
penso
me beije ou vá embora
mas você não quer ir ainda
a língua se move
me contaminam os ritmos de uma mulher que se chama como eu
quando ficamos sem palavras
voltamos aos livros
poemas
metalinguagens do presente
entre nós
a manhã entra azul no quarto
cidade do méxico
voluntária transição
o desejo me puxa por uma perna
esta manhã se pintou de azul triangulando os espaços luz
me beije ou vá embora
o poema se alonga na língua
também dá prazer esse desejo contido
nada a ver com o tempo
a superfície da sílaba
as horas tenebrosas
me aproximo e me separo
minha língua é um tear
foram tantos ruídos
fiquei tão nublada
ousada cerimônia nosso jogo
a geologia do entendimento
quando entorpecem as palavras
recorre-se ao poema
o passado dos outros fala
a entrelinha do corpo é complicada e dolorosa
tenho ventre e razão desprotegidos
absortos no exercício de dizer a borda
o precipício
faz som o fogo
a poesia também é imitação
uma língua solta fala demais
tanto
tanto que pulsam solitárias minhas máquinas
tremor telúrico
antes da simples conjectura
do deslizar que não se desenrosca
essa violenta simulação nos aproxima
claro que a língua
gostaria de conhecer sua origem
gostaria de alimentar as janelas pantanosas da dúvida
em vez dessa precisão lamentável
minha obscura descendência
a cidade rarefeita platinada
minhas cartas precisam luz
com alguns amigos, dívida epistolar
comigo, dívida serena
prometo ir
novamente outra
toda escrita esconde coisas
codificamos entre mãos-chave
rotunda
outra vez essa palavra
minha voz é um tear
há algo que espessa quando vem o poema
iminente pulso
gostaria de conhecer o silêncio do meu pai
afogado em sua ausência do século passado
aposto a página 1017 de um dicionário pálido
que sua língua acorda novamente
vamos
navegar pelas águas turvas dos países baixos
estes tempos sísmicos exigem isso
embora pareça o fim do mundo
a história nos recordará por que começamos algo
as décadas escapam
o presente não se parece com o futuro que imaginamos
ontem, a voz
a voz galopante
a ciência ficou aquém
o século do contágio
a obscuridade da ideia fazendo rondas vigilantes
a mudança nos alcança
esse é o nosso século espião
meu relatório
meu nome está ligado a tantos números
história delicada perversão histórica
é
o poema em queda
o poema é uma tômbola
o poema salta de estação em estação
maldito trâmite maldito
nunca antes desejei ser homem
do outro lado do abraço abraçando um homem
aqui
inevitavelmente se infiltram outros tempos ao poema:
ditadura latino-americana
século XX
guerrilha andina
assassinato
narcotraficante
televangelistas
teologia da libertação
exílio residência diplomacia
cordilheira vulcânica
na cidade da guatemala um homem me deu dois olhos
não voltei a vê-lo
acaso minha mãe às vezes sente falta do meu pai
família desmembrada
incrível virtude de nossa geração divórcio
na cidade da guatemala amei um homem pequeno por cinco dias
ondulação dormente
nossos corpos des/conhecidos
agora
homem que não existe te invoco
antes do horror apocalíptico
confio na matéria
dos beijos que iluminam o calendário
cidade do méxico
enorme capital pré-hispânica
sua lenta reconstrução os pêndulos
meu corpo, sua ampulheta
sextante temporal conjunção dos séculos
voltei a ser marxista
voltei a ser palavra
minha voz é um tear
para seu nome de pomba branca
branca
branco é a cor justaposta da incerteza
é abolida minha genealogia delirante
meu corpo antigo sem volta
faz tanto tempo que já não se alimentas mais de mim
nós mulheres gostamos de alimentar a tribo
mas você
não é mais a tribo
nem esses dias são a tribo
agora sou mais rebelde do que antes
agora
não sei o que sou vestida de plástico e semente
viajo no subsolo
o futuro está se esvaindo
mudou tanto minha escrita desde que te conheci
agora tenho
interlocutor
tantos você
muitos você antes de você
mas você é tanto
que prefiro te ver pouco e te beber a conta-gotas
saliva venenosa e visionária
o diálogo permeia tudo que sei
cruel perguntar ao mundo
o peso de alguém como você sob meu corpo
novamente você mesmo arrancando beijos de mim
eu também sou homem
da biologia ondulante do meu corpo
a escrita do meu ventre não se parece a nada
na cidade da guatemala pensei saber quem era
pouco antes de você
foi a poesia
e uma pólvora de livro velho sujando minhas mãos
gestão científica do trabalho
materialismo histórico
formalismo russo
negritude dadaísta
tráfico oral de histórias
encruzilhada voraz tensionando os extremos
tento o vazio da antiguidade asiática
mas estou cansada
de homens de ideias de datas de expectativas
crescem os lugares escolhidos
enche de ar a boca
densidade climática
respiro os horários
antes
antes foi a cidade da guatemala
e uma viagem truncada às minas de cobre perto do rio bravo
animal perigoso em cativeiro

escrevo
este poema inevitável e carnívoro
o meio caminho que ninguém nomeou
a distância entre os pontos cardeais e a aduana
aquilo que se extirpa nas classificações
trânsito
velocidade
o metrô do df abrirá uma nova rota
os números tornam-se importantes: zero à direita
zero à direita
zero à direita
invoco aos deuses de moda do milênio
agora dizer milênio é hábito
hoje me importa a contagem dos dias
o futuro começa a ser vislumbrado
próximo
tão perto
nos beijamos
treme
a língua do futuro
híbrida e veloz
há cada vez menos tempo
questiono a vigência de todas as verdades
talvez
o conhecimento também
caduca
expira
talvez
não tem direito de errar novamente
em nome da ciência
em nome da liberdade
em nome da literatura
talvez este poema
é mortal assim como seu sangue
acaso a escrita virá disfarçada de loucura
às vezes ainda comove essa palavra
que corrói ou exalta a beleza dos amigos
a noite
a velocidade é compulsiva
morde as unhas
dilata a abertura dos homens na rua
as luzes piscam
a cidade
desconecta as constelações
cidade obscura
cidade penumbra
à noite todas as cidades se parecem
cidade da guatemala enrosca os silêncios
incendia com cores de vertebrados
história do universal
tem bolsos rasgados
datas em fuga
tachonando a comissura de todos os abusos
decido dar
outra oportunidade para os homens que querem me tocar
me tornei frívola
tenho as pernas quentes
e terra atrás das orelhas
caminhei muito
minha voz é um tear
parei de colecionar as senhas dos itinerários
beijaria seu pai na boca se não estivesse morto
beijaria meu pai na boca se ele não tivesse ido embora
beijaria seu pai na boca para despertar seus olhos
nada está resolvido
o outdoor exibe o mesmo mito
um homem plantando sua bandeira estéril em uma cratera da lua
a nuvem de fumaça da bomba atômica
o leilão do muro de berlim
outro desastre histórico-atmosférico dilacera uma ilha
revolução indígena
a crise da água
as torres gêmeas
o resfriamento global nesta temporada
o estrondo repetido do império contra-ataca
a balcanização do devaneio
sujeito voador é identificado
chá jamaicano
quarto da cobertura
a costura dos livros de poesia
na cidade da guatemala muita bagagem
na cidade da guatemala os orgasmos
telefone público insólito ônibus
desapareceu um homem
seu sobrenome suado não habita mais o remetente
seu nome vazio que ecoa
deveria dizer-lhe
vou ficar com você
para corrigir a frieza do horizonte
já vi a guerra
teria sido capaz
de ensartar eclipses no quarto escrito de seus olhos
a escrita sempre um divisor de águas
as paredes rachadas de tanto terremoto
preveem
uma orgia de catástrofes demolindo instituições
rompendo nossas bocas
um concerto de mordaças apertadas
guerra digital entorpecendo o toque
um poema hecatombe
cheio de centelhas
todos disseram não
nada
nada para fazer na cidade da guatemala

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