Por Eduardo Coelho[1]
O título deste livro de Aline Cardoso, Aldrava, revela um aspecto caro à sua poesia: “aldrava” consiste numa argola fixada em portas, tendo a função de movê-las; também serve para bater contra portas, chamando a atenção de quem está do lado de dentro. Chamar a atenção de quem está dentro, resguardado, é o que muitos dos seus poemas parecem buscar, convocando seus leitores a saírem da zona de conforto ou do isolamento.
Em Aldrava encontram-se versos que apresentam um teor insurgente, manifestando-se contra formas de violência características de um país onde a desigualdade e a opressão estão cotidianamente em cena. Não à toa, no início deste volume, há um poema-manifesto que busca, a partir da luta e do sonho, construir um novo lugar e um novo tempo: “Luto por um país onde a fome e o analfabetismo/ não serão enredo ou medalha ao mérito de superar/ um projeto de país que nos extermina desde 1500.// Eu sonho com um país onde a biodiversidade e a terra são respeitadas,/ onde pessoas pretas a cada 23min não são assinadas,/ eu sonho com gente fazendo arte// Eu sonho com crianças leitoras/ sonho com incentivo à pesquisa científica/ eu sonho com o fim dos genocídios.”
Nesses versos de alta comunicabilidade, avessos ao hermetismo, há um projeto de todo contrário à política facista neoliberal, que se tornou obscena nos anos de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e companhia. Se não bastasse a pandemia da covid-19, havia também a ação da “necropolítica” e sua intensificação. É disso que trata “Quem faz um poema ainda respira”: “O genocida impera/ ceifando vidas nesta terra/ onde a morte usa muitos disfarces/ para colecionar corpos”.
Escritos durante a pandemia, conforme a nota da autora intitulada “Firstly, take a breath”, os poemas deste livro buscam ar e movimento – e procuram sobretudo uma esperança difícil de ser conquistada. São muitos os fatos que desidratam a esperança, como lemos no poema “Ceifadora”: “Urubus volitam hospitais/ há corpos nas ruas,/ mortos abandonados/ em esquinas e vielas do Peru// Há fileiras de caixões/ solenemente deitados/ no mármore frio das igrejas europeias,/ aguardando pelas empilhadeiras”.
Trata-se de uma dificuldade relacionada não apenas ao contemporâneo sombrio, mas também às diversas projeções em torno do futuro, que enfraquecem qualquer possibilidade de transcendência e superação das dores do nosso tempo. A distopia consome o imaginário propositivo e transformador da realidade. Por causa disso, talvez não seja exagerado afirmar que o poema “Aldrava”, homônimo ao título do livro, consista num poema sintomático de uma crise que afeta especialmente as novas gerações: “Hoje,/ gostaria de ter escrito um poema sobre esperança,/ mas não me veio a passagem// Restou-me apenas a ossatura deste poema e/ a graça de imaginar como ele continuaria/ sem mim”.
Há um senso de realidade que obstrui o desenvolvimento do corpo desse poema, embora ele exista, comovente e crítico, para além de ser apenas um projeto ou um rascunho. Em seguida, a voz poética fecha os olhos; o desencontro entre ela e a esperança se mantém; a imaginação, contudo, desponta a partir da “ossatura”, problematizando a condição da escritora: “Imagino o rádio de Vó Rosa anunciar um boletim de guerra./ Por que a história se escreve com sangue e a memória vira pó?” Em outras palavras, não são apenas o presente e o futuro a obstruir o surgimento da esperança. Algo mais se apresenta. A imaginação coleta justamente o trauma (“boletim de guerra”) e o apagamento (“memória vira pó”) ligados ao passado (o rádio e a vó). Trata-se de uma imaginação aderida à realidade histórica, que oscila entre passado e presente, às vezes sobrepostos devido às formas diversas de violência mantidas ao longo dos séculos. Não é de se estranhar, portanto, que o lirismo não possa ser mobilizado como índice de afeto maternal, conforme, mais uma vez, uma estrofe de “Quem faz um poema ainda respira”: “gostaria de ninar minha criança/ com canções bonitas nos lábios/ mas meu hálito de mãe cheira a tensão/ e tudo quanto me resta se concentra na sanidade/ do umbigo que gestei// buscar a superfície enquanto tudo ao redor/ é afogamento em sangue/ ela me amanhece e/ o medo sente medo de nós”.
Diante desse contexto, segundo a primeira estrofe do poema “Vingar I”, não há alternativa se não assumir uma voz política: “Ser poeta é ato político/ Sinal vermelho em vias abertas”. Nesse caso, o verbo “vingar” tem o sentido de crescer, desenvolver-se – e a dinâmica entre poesia e política vai estruturando, consequentemente, uma possibilidade de sobrevivência que recorre à imaginação. Assim, o poema que não podia ser feito vai se fazendo, preenchendo brechas e escapando das sobrecargas da poeta, editora, professora, que também é mãe e dona de casa. Fazer o poema é, ainda, fazer e tornar-se, momentaneamente, uma outra mulher: “Ao limpar a casa religiosamente,/ descobri que até os vermes/ têm hora de dormir// Mas só a dona de casa que não.// […]// Para ser a mulher que escreveu este poema,/ precisei ser a mulher sobrecarregada, surtada,/ sebosa… será?// Atrasei a esterilização da casa,/ cuidei destes últimos versos e/ fui dormir.”, lemos em “Rotina”. Assim, a poesia alcança um teor utópico-revolucionário, pois é através dela que Aline Cardoso encontra a possibilidade de construir alguma coisa, valendo-se dos restos e dos traumas históricos.
Em Aldrava, o lar – geralmente associado ao conforto e à segurança – é um espaço que requer coragem, como observamos nos últimos versos de “Ocupação”: “entre o parafusar e o desaparafusar dos móveis/ aprendi na lida que/ lar/ além de ser uma palavra de três letras/ é um lugar que requer coragem para ficar.” A poesia também requer coragem. Não por acaso, ser mãe exige, no poema “Balaclava”, a mobilização de um vocabulário da guerra: “Mãe é linha de frente,/ peito nu em zona de guerra// Útero, músculo-bunker/ rarefeita câmara sanguínea, punho em riste// Território elástico/ feito de travessias.”
Entre as travessias dessa mãe, há os olhos de sua filha, que parecem lhe mostrar, como a poesia o faz, outros caminhos possíveis, como nos versos iniciais de “Prisma”: “Os olhos da minha filha não conhecem o medo do futuro,/ refletem a valentia de um mundo novo,/ sob as suas pálpebras reluzem sonhos intocados/ a centelha que os alimenta moverá as caldeiras/ da humanidade,/ […]/ não há para esses olhos-prisma horizonte impossível/ tudo o que tocam renasce”. É o amor que faz renascer a esperança, como nos mostra esta estrofe de “Quem faz um poema ainda respira”: “O amor, a fé, a esperança e/ o afeto têm nos dado suporte/ para ruminar os noticiários e/ empachar com o café da manhã”, em que o verbo “empachar”, ou seja, empanturrar, desconstrói a aparente idealização e arrefecimento do desconforto provocado pela visão de pessoas que “agonizam/ sem dignidade”. Porém, é o campo do afeto que sustenta a resistência aos tempos sombrios, escapando da apneia, chegando à superfície por meio da força da linguagem poética.
Em Aldrava, o renascimento é uma questão frequente, exigida pela realidade histórica e seu lastro de barbárie; talvez, exigida também pela criação artística. Em uma passagem de “Vingar I”, a criação e a esperança comungam da mesma energia, ligando-se indiretamente ao renascimento das coisas deste mundo: “Tenho o secreto desejo de inumar/ tudo o que não tem raízes aéreas// É o meu jeito de querer que tudo ao meu redor/ tenha chance de poder vingar e de poder crescer// Esperança é crer que os vaga-lumes esquecerão de morrer/ para lembrarem da eternidade que é frutificar”.
Este é um livro que capta muitos aspectos do nosso tempo, sem abdicar do passado e do futuro, tratados em Aldrava sob as linhas de tensão firmadas pela vida e pela morte, pela esperança e sua falta, pelo desejo e as obrigações cotidianas. Nada é simples: distopia e utopia se tensionam dialeticamente, contraditoriamente. Não existem vias de mão única em seus poemas nem soluções fáceis para os problemas encontrados. A consciência clara de que a dor não passa está presente em suas folhas, mas Aline Cardoso também nos oferece campos de respiração, enfatizando que agir em busca da vida é a possibilidade que nos resta, sempre.
[1] Eduardo Coelho é professor do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Letras (Ciência da Literatura) da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É um dos coordenadores do Programa Avançado de Cultura Contemporânea – PACC, onde desenvolve o projeto Laboratório da Palavra.