Renée Ferrer: Diversos Caminhos da Poesia no Paraguai

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Entrevista e tradução por Floriano Martins

Renée Ferrer (Paraguai, 1944). Poeta, narradora e historiadora, sua voz é reconhecida entre as dos criadores e intelectuais de notória importância para a cultura paraguaia. Publicou livros de poesia como Desde el cañadón de la memoria (1982), Peregrino de la eternidad (1988) e El resplandor y las sombras (1996), assim como se destacam, em sua prosa, títulos como Los nudos del silencio (1988), Por el ojo de la cerradura (1993) e Desde el encendido corazón del monte (1994). Como historiadora cabe mencionar os livros Un siglo de expansión colonizadora. Los orígenes de Concepción (1985) e La narrativa paraguaya actual: dos vertientes, este último publicado nos Estados Unidos em 1994. A poesia reunida de Renée Ferrer está sendo preparada para edição na coleção “O amor pelas palavras” (Editora Cintra/ARC Edições), de circulação pela Amazon.


FM | Recordo palavras do argentino Francisco Madariaga, ditas justamente em uma conferência em teu país: “Todo escritor, ou poeta, surge de um meio natural ou urbano, e caminha pelos Caminhos Reais de sua terra, sem saber até onde eles podem levá-lo”. De onde surge Renée Ferrer e por onde tem caminhado?

RF | Renée Ferrer surgiu de um lugar simples, com uma mãe uruguaia e um pai, que nasceu filho de imigrantes catalãos, padeiros por profissão, e terminou sendo Decano da Faculdade de Química da universidade nacional. Tenho o convencimento de que cada um traz realmente os caminhos de seu destino, mas é indubitável que o meio de onde se desenvolve tem uma grande influência na personalidade. Devido a ascendência de meus progenitores minha visão de mundo, durante muito tempo, teve o cunho dos elementos forâneos que suas culturas traziam, e a carência de um sabor claramente paraguaio, por exemplo em minha casa não se falava o guarani, fato generalizado na maioria das famílias paraguaias. Por outro lado, a cultura de minha mãe me ajudou a freqüentar desde muito jovem a música clássica e a literatura francesa, russa, inglesa, além dos romancistas espanhóis e norte-americanos. Já anteriormente meu avô paterno enriqueceu minha infância com os livros de Perroult, Cristian Andersen e os irmãos Grinn, e meu pai com a zarzuela e a voz de Enrico Caruso. Venho deste amor à beleza dada como ingrediente natural da vida e vou pelos caminhos da palavra tentando decifrar o mundo e meus próprios enigmas sendo fiel a essa beleza. Em mim se deu o fenômeno de partir desta visão universal para ir embrenhando-me cada vez com maior intensidade no particular, na paraguaiedade e no destino singular de meu país.

Creio que estou me tornando cada vez mais paraguaia e sinto uma imensa compaixão pelas vicissitudes em que se debatem muitos paraguaios. A prova mais próxima do que estou dizendo é meu romance histórico, Vagos sin tierra, onde tentei mergulhar até a medula da alma paraguaia.

FM | Embora sem participar efetivamente do grupo reunido em torno da revista Criterio (1966-1971), teu nome se encontra inserido entre os diversos poetas que, segundo Teresa Méndez-Faith, testemunham “a angústia e a esperança de uma época obscura e trágica do Paraguai contemporâneo”. Poderias falar um pouco desses primeiros momentos de tua busca estética?

RF | Lamentavelmente não me envolvi inteiramente com o grupo que se formou em torno de Criterio, e digo lamentavelmente porque teria saído totalmente enriquecida. Não que não os tenha conhecido, mas sim porque naquele momento de minha adolescência eu era um ser solitário, fechada em minha própria vida e meus próprios sentimentos. Meu contato com os poetas de minha geração eram esporádicos e minha poesia inicial se foi modelando sem ter uma clara consciência dos critérios estéticos que a regiam.

Por isso, então, eu estava ainda com o olhar posto no mundo, na guerra do Vietnam, na fome da Ásia, as viagens espaciais, a origem do universo, a destruição nuclear, temas que se refletiram em minha poesia desde o segundo livro publicado em 1967. Foi na década de 80 que comecei a ver realmente a situação do Paraguai, fato que me moveu a utilizar a prosa em lugar da poesia. Assim nasceram alguns contos de “La Seca” e vários capítulos de “Los nudos del silencio”, publicados em outubro de 1988, antes da caída de Stroessner..

Minha primeira busca estética está centrada na freqüência de Rubén Darío, Amado Nervo, Gustavo Adolfo Becker, Pablo Neruda, Gabriela Mistral, Alfonsina Stomi, Juana, e os poetas da geração de 27 na Espanha, além dos clássicos que se liam no colégio secundário.

Mas se tenho que reconhecer uma influênccia moral devo eleger o poema “Si”, de R. Kipling, o qual deixou uma marca indelével em minha atitude diante da vida e diante da arte.

FM | E como te sentes inteiramente parte de uma literatura paraguaia? Refiro-me a um momento central de identificação com o que se escreve em teu país.

RF | Certamente me sinto parte da literatura paraguaia, porque nasci no Paraguai, veio aqui e escrevo sobre “este lugar que me foi dado” “para amar, rir e dizer minha palavra”. Agora, como se insere o Paraguai em minha obra é outra coisa. Inicialmente a presença do país em minha poesia se circunscreveu a paisagem e minha relação com ela, mais adiante me perturbou a situação política, a marginalização da mulher, os deserdados da terra, preocupação que se manifestou já nos contos como “Y… anda por ahí nomás”, “El Pozo”, “La muertita”, “Tina”, assim como em vários capítulos de meu romance “Los nudos del silencio”, surgido em outubro de 1988. E no poemário “Viaje a destiempo”, dedicado aos torturados e desaparecidos durante a ditadura de Stroessner. O momento da tomada de consciência de que como escritora devia dizer algo sobre a opressão de meu país, se remonta ao início da década de 80, talvez um pouco antes, quando comecei a escrever contos, justamente movida por essa necessidade interior. Mas foi com meu romance histórico Vagos sin tierra que me senti mais paraguaia do que nunca, pois me aprofundei com paixão na paraguaiedade, na idiossincrasia do povo e nas cosmovisões das etnias existentes no século XVIII. Com esta obra creio que também se deu em mim a apropriação da língua autóctona como parte essencial do ser paraguaio e o emprego do castelhano paraguaio de uma maneira mais profusa que em meus livros anteriores. Tudo isto, além de estar incluída nos manuais escolares e nos programas de estudo de nível médio e universitário acrescentou essa sensação de pertinência.

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FM | Seguindo uma perspectiva estética, gostaria de saber quais as tuas afinidades com outros poetas hispano-americanos? Indago isto não como uma limitação de teu universo de diálogo com outras poéticas, mas antes preocupado com um outro aspecto: o que impede a existência de relações mais estreitas entre os diversos países que conformam a América Hispânica?

RF | Creio que minhas afinidades não são exclusivas. Cedo me senti muito próxima a Pablo Neruda, a Amado Nervo, Alfonsina Storni ou Delmira Agustini, sobretudo no início, para depois chegar até um Gonzalo Rojas, um César Vallejo ou um Ocatvio Paz. Não tenho muito claras essas influências, ainda que saiba que existam em todo escritor, porque sempre tentei transitar em vários caminhos.

Na América Latina não existe, em geral, uma relação muito estreita entre os poetas; o conhecimento, salvo a leitura dos nomes consagrados, é bastante limitado. Cada país é um mundo fechado em si mesmo, sobretudo o Paraguai que sofreu a clausura tanto geográfica como ideológica. Talvez por aí devam buscar-se as razões. Nosso panorama se agrava pelo isolamento que sofremos, a carência de revistas literárias, as quais chegam de forma irregular, e a uns poucos assinantes, os escassos intercâmbios intelectuais. Porque essa falta de relacionamento e aprofundamento das obras dos autores da América Latina? Não creio que a resposta seja simples. As distâncias são enormes e os canais de comunicação deficientes. Mas ainda com os países limítrofes há uma falta de fluidez nas comunicações, uma grande dificuldade para editar fora, um grande individualismo também, que afortunadamente está se rompendo graças aos encontros e congressos de escritores, onde podemos trocar livros e experiências. Este não é, todavia, um sistema que renda frutos maciços. É impressionante a quantidade de escritores que existimos e o pouco que nos conhecemos e nos lemos.

Na realidade esta cultura do exílio, como a chamas, é uma característica da literatura paraguaia, já que uma parte importante da mesma se escreveu no exterior e a outra, a menos conhecida e valorizada, dentro de nossas fronteiras, numa sorte, ou má sorte, de exílio interior, o “inxilio”, como disse alguém referindo-se a esta clausuraque nos marcou de uma forma muito aguda também aos que ficamos dentro. E te direi como, pelo menos a partir de minha ótica. Vivia-se, ou vive-se (porque as seqüelas do isolamento não se superam tão facilmente), como separados do resto do mundo, como num espaço de não pertinência, desconectado da palpitação cultural do universo, como num tempo atrasado, o qual nos custa ainda por em dia. Ainda que não deixássemos o país, é como se o tempo do resto do mundo nos deixasse. É certo que as comunicações atuais e a abertura política têm ajudado a superar de alguma forma esse estranhamento de tudo o que acontece neste “agora”, que parece continuar chegando atrasado.

FM | São inúmeras as referências a essa condição do exílio no que diz respeito à poesia paraguaia. De um lado, poetas essenciais como Hérib Campos Cervera ou Elvio Romero, escreveram praticamente toda a obra no exílio na Argentina. Por outro, Josefina Plá, que resistiu bravamente a todos os obstáculos internos, nasceu nas Ilhas Canárias, vivendo no Paraguai uma curiosa forma de exílio. Em teu caso, o quanto foi imperativo em tua poética o convívio com essa cultura do exílio?

RF | A dificuldade de fazer conhecer nossas obras, a ignorância quase total, em certos casos, da existência de uma literatura paraguaia dentro de nossos limites geográficos nos chega como uma porta que se fecha deixando-nos dentro. Claro que estas reflexões se dão a partir de uma pergunta, talvez não chegaríamos a elas conscientemente. É curioso que Josefina Plá tenha escolhido este exílio interior, que para ela era um exílio de sua própria terra, mas há que levar-se em conta que este país se meteu até a medula como um sonho, ou pesadelo, do qual já não é possível desentender-se. No meu caso, sobretudo no começo de minha vida literária, vivi bastante isolada. Minha casa da infância era também um território, de certa forma, fora de contexto desta paragauiedade que fui assumindo com o tempo, e a primeira parte de minha obra, apresenta, pelos temas que toca, uma busca desta universalidade que é como um anseio imperioso de participação em tudo. Ser parte da humanidade, ser um cidadão do mundo, refletir sobre os problemas deste mundo, é uma determinação que modelou as primeiras tramas de meu trabalho criativo. Só mais tarde veio essa consciência de pertinência a este lugar e com ela a desesperança de exílio interior, este saber que tudo nos resultará mais difícil porque estando dentro, todavia estamos fora de um sem número de possibilidades.

FM | Se me permites, gostaria que mencionasses a importância de um poeta como Josefina Plá para a compreensão da cultura paraguaia como uma força em si mesma. Parece-me que esta mulher é um dos grandes pilares da cultura em teu país, cujo comportamento deve ser admirado e seguido por todos.

RF | Creio que toda cultura tem uma força em si mesma. A importância de Josefina Plá, no meu entender, foi justamente ter sentido esta força da cultura paraguaia de uma maneira tão intensa que já não pode desprender-se dela, dedicando toda sua vida a enriquecê-la e a investigá-la. Certamente Josefina é um pilar de nossa cultura não somente pelo que ela representa dentro da poesia ou narrativa paraguaia, a cerâmica ou o ensaio, mas sim por sua postura diante da vida, por sua defesa da mulher num tempo em que manifestar-se feminista significava ser uma pioneira na área dos direitos humanos e do respeito aos seres marginais. Admira-se Josefina Plá por sua obra, por seu comportamento, por sua inteligência, e ela nunca poderá ficar excluída de um estudo sério da cultura paraguaia, já que não somente a acrescentou com sua própria criatividade, mas sim ajudou a interpretá-la com uma visão totalizadora.

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FM | Tens uma obra vasta, que inclui tanto a ficção quanto a poesia. em entrevista que fiz ao venezuelano Juan Calzadilla, conversamos a respeito das relações possíveis entre prosa e verso, abordando aspectos como subjetividade, intuição, clareza, reflexão e metáfora. Diz ele que na poesia, ao contrário da prosa, “a intuição contém ou afoga o impulso reflexivo ou o torna desnecessário, uma vez que se recusa a qualquer explicação”. Como convives com essas duas maneiras de tocar a criação?

RF | Para mim tanto a poesia como a prosa têm seu ingrediente de intuição e de reflexão, ainda que talvez em proporções diferentes. Mesmo que seja certo que um poema tenha como ponto de partida uma iluminação, que poderíamos chamar de intuição, inspiração, após haver experimentado uma emoção, não creio que esse gérmen inicial exclua a reflexão, pelo contrário, creio que o trabalho posterior a esta emoção inicial, uma vez decantado, está baseado justamente na reflexão, no pensamento. Como poetizar algo que se pode racionalizar é um mistério ao qual chegam os poetas não sem trabalho; talvez não o saibamos explicar, mas certamente o poema requer uma racionalização no momento de utilizar a ferramenta com que se trabalha, quer dizer a palavra. Claro que escrever poesia reflexiva é um grande desafio que pode naufragar no fracasso, mas a felicidade de conseguir refletir poeticamente, sem que a presença da razão mate a poesia é tão intensa que vale a pena arriscar. De todas as maneiras quando pensamos em ritmo, métrica, rima, metáforas estamos racionalizando o sentimento, estamos dobrando para que caiba na estrutura do poema; se depois de todo este trabalho a emoção poética persiste é que se conseguiu o poema.

Agora, é verdade que a prosa parte de uma colocação mais concreta, digamos racional, e que o efeito é mais direto; na narrativa quando queremos dizer algo não há mais remédio que dizer este algo de uma maneira compreensível, na poesia esse algo pode estar escondido por trás das metáforas, mas de todas as maneiras a poesia tampouco está ausente da prosa. Se não está nas palavras, estará nas situações ou nos personagens, nos símbolos, nesse tremor que persiste, quando persiste, após haver terminado a leitura. Já me disseram várias vezes que minha poesia, às vezes, é muito reflexiva e que minha narrativa é muito poética; creio que reflexão e intuição são partes constitutivas de meu ser e por onde se refletem minha obra. Me encanta que o pensamento, a emoção conceitual, esteja presente em minha poesia, ainda que, é claro, não esteja em toda ela; e que minha prosa vibre com o sopro das rajadas poéticas. Entendo que esse estilo pode demorar a ação de um conto, ou distrair a atenção do leitor de um romance; entendo que uma referência filosófica possa temperar a emoção de um poema, mas de todas as maneiras eu gosto.

FM | Ao escrever sobre Los nudos del silencio, o crítico Manuel Alvar observa que que “os livros paraguaios não transcendem, e deveriam fazê-lo”, acrescentando que “o país está encerrado em sua própria geografia e seus livros se encontram circunscritos a umas cercas das quais é muito difícil sair”. Recordo uma avaliação, quando mencionas as circunstâncias políticas e a condição geográfica mediterrânea como responsáveis essenciais de uma condenação ao desconhecimento. Poderias comentar um pouco mais o assunto, referindo-se a alguma ação de resistência que se possa identificar hoje como funcional para reverter esse quadro?

RF | Penso, com certeza, que a extremadamente prolongada ditadura e a condição geográfica do Paraguai são em parte responsáveis por este desconhecimento de nossa literatura no exterior, mas não creio que se lhes possa atribuir toda a culpa, digamos assim, de que nossos livros não sejam conhecidos lá fora. Há circunstâncias econômicas e culturais que fazem mais densa a nebulosa que envolvia a literatura paraguaia escrita dentro do país, e digo envolvia porque atualmente alguns autores estamos sendo traduzidos e incluídos em diversas antologias nos Estados Unidos da América, França, Itália, Suécia, Bulgária, Alemanha e Espanha. O fator econômico verdadeiramente não ajuda a difusão; poucas são as editoras que têm catálogos atualizados; as tiragens são exíguas, algumas não passam dos 300 exemplares; nossa presença nas Feiras de Livros é escassa ou nula de maneira que o conhecimento que se tem no exterior dos autores paraguaios tem se canalizado melhor pela via acadêmica. Não temos conseguido que as grandes editoras se interessem por nossos livros, porque não apostam em escritores que impliquem um risco comercial, vão ao seguro, ao escritor consagrado. Quase todo o reconhecimento que conseguimos tem sido através do esforço individual, enviando nossas obras a diferentes centros de cultura, assistindo aos congressos que nos convidam, dando conferências sobre a literatura paraguaia quando nos aparece a oportunidade, assistindo às feiras de livros de Buenos Aires ou Montevidéu, que são as mais próximas de nós. Somos vários os autores que além de difundir nossas obras enfocamos nossa participação nos encontros de escritores com um espírito amplo, tratando de dar uma visão totalizadora de nossa literatura. Nos interessa que o mundo saiba que existe uma literatura paraguaia, ainda que haja sido postergada, minimizada e ainda negada em muitas ocasiões.

FM | No discurso de abertura de um encontro de escritores latino-americanos realizado no Paraguai em 1994, Gerardo Fogel – que então presidia o comitê organizacional – referia-se ao processo de integração cultural da América Latina “como embasamento insubstituível e irrenunciável da integração econômica, social e política de nosso continente”. No entanto, a cultura permanece fora dos propósitos do MERCOSUR, por exemplo, e o continente se dispersa ainda mais entre si. Quais te parecem sejam hoje as perspectivas de um diálogo entre nossas culturas? De que maneira os poetas estamos contribuindo de forma concreta para tanto?

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RF | É verdade que o mundo vive por um lado um projeto de integração mas por outro sofre a mais aberrante dissociação, chegando à massacres com o pretexto de limpeza étnica ou a demolição dos maiores testemunhos culturais em nome de um fundamentalismo espantoso, o que me move a pensar que a melhor opção entre estes dois polos é a integração, com todas as falências que ela implica. Já temos visto que o nacionalismo a qualquer preço tem fracassado e pode chegar a excessos incríveis, de maneira que talvez seja saudável voltar a esta máxima que nos ensinaram na escola “a união faz a força”, a união para o bem, é claro. Isso não quer dizer que tenhamos que renunciar a nossas identidades, pelo contrário, creio que nessa diversidade está a maior riqueza da humanidade. O Mercosul se iniciou certamente sobre a base de uma formulação econômica, social e política, o que já significa um entrelaçamento cultural, se vamos nos ajustar ao termo cultura no sentido antropológico. Mas entendo que a pergunta refere-se ao aspecto cultural no tocante às manifestações denominadas “culturais”. Eu não creio que a cultura esteja ficando atrás neste projeto de integração regional, mas creio que seja através da cultura que estão acontecendo as melhores contribuições, que logicamente não se vão traduzir em nossas balanças comerciais, mas que todavia nos ajudam a defender essas identidades armazenadas por uma política de conjunto que tende a conseguir benefícios econômicos.

Tenho estado em congressos de escritores do Mercosul, existem antologias, têm havido concursos de literatura e outras artes, existe em uma universidade de Porto Alegre uma matéria que engloba a cultura, a economia, a situação social e política dos países do Mercosul como um todo diferenciado. É mais fácil que se dê o diálogo de nossas culturas em um contexto menor, tal como o Mercosul, o intercâmbio de experiências e dificuldades nos reúne e nos move a empreender ações solidárias. Talvez elas devam partir dos indivíduos, como todas as grandes reformas, trocas ou avanços que aconteceram no mundo, mas ao ter um contexto de ação determinado, creio que as possibilidades de um logro concreto sejam mais factíveis. Penso que os poetas, se de alguma maneira contribuímos para esta unificação solidária, foi dizendo nossa palavra; aproximando nossa poesia aos outros; escutando a poesia de outros; refletindo quão raramente nos damos tempo para conhecermos e desfrutarmos, quão freqüentemente deixamos de fazer contato com essa surgente de imaginação e valores que os seres humanos levamos dentro.

FM | Em conversa com o ficcionista Per Johns, brasileiro de origem dinamarquesa, me disse: “A viagem interior é a única possível, no sentido de obedecer não só ao factual, mas ao onírico. De um certo modo, a viagem interior que se dá do lado de fora na viagem que se locomove, corresponde àquela procura jamais saciada da paisagem própria e intransferível a que se referia Rilke, uma espécie de correlativo objetivo”. Qual espécie de aventura interior tem percorrido Renée Ferrer e que lhe permite hoje uma leitura de nosso tempo? Por onde caminha o humano em nós?

RF | Penso que toda criação está baseada nesse recorrido interior que abarca tanto o terreno dos atos e as circunstâncias como o campo onírico donde se debatem os anseios e conflitos que se disputam em nosso ser. Não posso imaginar uma obra que não extraia deste canteiro o germe da vida, nem autor(a) que poetize no vazio, de costas para a realidade íntima ou externa. Eu creio que há uma estreita relação entre nossa paisagem interior e tudo o que escrevemos, assim como influem também as situações em que nos vemos envolvidos ou o entorno, que em certa forma nos condiciona. Quando penso em minha obra enquanto uma grande correspondência com meu itinerário pessoal por um lado e com minha postura frente à situação do mundo em geral e de meu país em particular. Fatos como o Holocausto, o perigo da catástrofe nuclear, com o correspondente perigo da destruição total da humanidade, a deterioração do meio ambiente, a ditadura que sofremos no Paraguai, a situação dos camponeses sem terra, meus sentimentos pacifistas e de igualdade diante dos diferentes grupos humanos, meu convencimento da possibilidade do amor universal, de uma fraternidade cósmica, a solidariedade entre os diferentes reinos da natureza, são temas que, além dos intimistas, se encontram em minhas obras tanto poéticas como narrativas, e dão certamente uma leitura de nosso tempo. Penso que o ser humano está em uma constante evolução; que somos seres inacabados que avançamos, ainda que pareça mentira vendo as atrocidades que se cometem diariamente, até um estado de perfeição.

Estamos na Terra porque somos humanos, porque temos defeitos, porque somos imperfeitos e cometemos erros, senão estaríamos em outro dos mundos possíveis. Se o universo é infinito não vejo porque a Terra teria que ser a única opção, e se parece que não avançamos é porque os seres que se elevam na escala espiritual passam a outros estados ou a outros mundos, que eu não sei como são, porém é evidente que devem existir em algum rincão deste cosmos ilimitado. Que nós não possamos apreendê-los com nossa inteligência limitada não quer dizer que não existam. Simplesmente temos acesso ao que nos corresponde segundo o grau evolutivo em que nos encontramos; um cachorro não sabe nada de contas bancárias, mas elas existem; nós não sabemos muitas coisas dos círculos espirituais superiores porque não chegamos à compreensão necessária. Então o ser humano peregrina na eternidade, entra e sai deste tempo enquanto se dirige até outro que para o momento é uma incógnita.

FM | A última pergunta é tua? O que quiseres sugerir e que acaso eu tenha deixado de fora.

RF | Creio que todo escritor tenha suas próprias obsessões que vão se repetindo como variações de um mesmo tema ao longo de sua vida. Relendo minha obra, o que faço raras vezes, penso que é curioso como de imediato se entroncam tanto a poesia como a narrativa com a música. Meu livro Nocturnos está totalmente estruturado sobre a música de Federico Chopin e Enrique Granados, seguindo as frases musicais criei os versos, atendendo aos sons graves ou agudos empreguei as vogais fortes ou débeis. Também o piano está presente tanto no romance Los nudos del silencio como no conto e obra teatral La colección de relojes, onde adquire o símbolo da frustração por um lado e da liberação por outro.

Por outra parte a morte está muito presente em meus contos e em meu romance Vagos sin tierra. Lembro-me que quando ia publicar La Seca e outros contos, levei o manuscrito a Josefina Plá. Quando lhe perguntei qual conto deveria ler no ato de apresentação me respondeu: “Leia Helena, que é a única que ficou viva”. Até este momento eu não havia percebido que os meus personagens morriam.

Em contrapartida, em minha poesia são repetitivos os temas amorosos, a preocupação pelo destino da humanidade, o rechaço ao racismo, o Holocausto, o armamentismo, a bomba atômica e o ultraje à natureza.

É muito difícil que o próprio autor analise sua obra, pois sempre existe uma grande carga de subjetividade que o impede de ver o que outros seguramente verão. De modo que a resposta fica aberta para posteriores meditações.

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