Apresentação e tradução de Floriano Martins.
Vicente Huidobro (1893-1948) é um dos mais destacados criadores no ambiente das vanguardas no continente americano. Bilíngue, viveu boa parte de sua vida na França. Deu uma nova dimensão e originalidade ao objeto estético, através de uma obra múltipla que envolve o poema, a prosa poética, a novela e o teatro. Criador de um movimento que denominou de Creacionismo, em sua defesa assinou inúmeros manifestos. Floriano Martins traduziu dois livros seus, Três novelas exemplares (2012) – com Hans Arp – e Tremor de céu (2015), sendo ainda organizador de Traduções do universo (2019), em que reúne ensaios, manifestos e entrevistas, todos eles publicados pela Sol Negro Edições.
OUTONO REGULAR
A lua gira em vão
Em minha mão
O dia e a noite
Se encontraram
E o ângulo aberto melhor que uma boca
Meus pensamentos tragaram
A lua moinho de vento
Gira gira gira em vão
A paisagem no fundo das idades
E em sua jaula o tanque
Em vão tu buscas
Árvore de outono
Já não há pássaros
Já não há pássaros
Olhando sobre os vales
Por todos os lados podemos ver os sons de sinos murchos
O dia também está cheio de minhas mãos
Ao outro extremo se foram
Os passos sem ruído
É O OUTONO DOS CAMPANÁRIOS
Já não sei de morena ou ruiva
Deixemos o lugar aos marinheiros
Eles vêm olhar em minhas ilhas
A natureza morta do claro de lua
Com sossego à margem da água
E a rosa desfolhando-se sobre o pássaro que canta
À meia-noite e quarenta minutos
Esquece-me
Pequeno astro oculto
A esta hora embalsamo meu bosque
Esquece-me
Piloto sem navio e sem lei
Ao fundo de meus olhos
Cantará sempre o poeta afogado
RELATIVIDADE DA PRIMAVERA
Não há nada a ser feito contra as noites de maio
Às vezes a noite se desfaz nas mãos
E eu sei que teus olhos são o fundo da noite
Às oito da manhã nascem todas as folhas
No lugar de tantas estrelas teremos frutas
Quando alguém se vai a paisagem se fecha
E ninguém cuidou das ovelhas da praia
A primavera é relativa como o arco-íris
Poderia muito bem ser um guarda-sol
Um guarda-s9ol sobre um suspiro ao meio-dia
O sol foi extinto pela chuva
Guarda-sol da montanha ou talvez das ilhas
Primavera relativa arco de triunfo sobre meus cílios
Tudo está calmo à direita e em nosso caminho
O pombo é tíbio como uma almofada
A primavera marítima
O oceano inteiramente verde até o mês de maio
O oceano será sempre nosso jardim privado
Onde as ondas crescem como samambaias
Eu quero essa onda de horizonte
Único laurel para a minha fronte
No fundo de meu espelho o universo se desfaz
Não há nada a ser feito contra a noite que nasce
GLOBE-TROTTER
Teu olhar azul
Teu olhar azul
Tantas ondas tantas rochas
Para onde vão?
Em que porto deixarei minha canção?
O vento faz girar as estrelas
E o navio se afasta
Em teu olhar que treme
Por aqui passaram
Meus versos e meus anos
Nesse doce mar pradaria
Onde pascem todas as primaveras
Nesse mar naufragaram
Todos os meus barcos floridos
Marinheiro do ocaso
Olhemos os cata-ventos
Jamais irei às praias sem gaivotas
Sempre de pé
Marinheiro no fundo do céu
Com os braços abertos na proa
A fumaça de teu cachimbo inflou as nuvens
E todo o céu tem o cheiro de teu tabaco
Olha bem mais longe
Marinheiro triste
De tanto ser Cristo
Sobre os mastros
Ergamos os braços
Até o céu que nasce da água
Até essa aurora esquecida pelos pássaros
O vento faz girar as estrelas
E eu sigo seus olhos natais pescados
Entre os dedos um pouco de azul
Espuma de mar sobre o calçado
O ponto do horizonte é meu chapéu
E em todas as praias
Minha gravata ao vento é uma bandeira
Globe-trotter
Estou longe de mim mesmo
No fundo dessa neblina eu me lembro
(uma lembrança que luz como uma lanterna
Laranja na mão)
Estava no colégio, estava interno
E passava o verão
A bordo de teus olhos azuis
JÁ VAI HATCHOU
Como um ar de música estive em todas as partes e nenhuma
Vi o amor e o cavalo antigo
As ondas do mar morrendo de peste
O trem a vida o pranto que resolve seu teorema
O aninhado em uma nuvem que viajava para o leste
Um pássaro que cantava esquecido de si mesmo
No fundo eu te amo
És mais pálida que a hora e fazes a lenda
Tuas pálpebras é a única coisa que voa
E és muito mais bela que retornar do pólo
Durante a noite
Teu coração reluz
Somente tu vives
Lá fora é o fim do mundo e do violoncelo
Uma lágrima treme a bordo do céu
A terra se afasta e se desinfla
Igual a teus olhos e teu rosto
O quarto se esvaziou pela fechadura
DE REPENTE, 3
Me afasto em silêncio como uma fita de seda
Caminhante de rios
Todos os dias me afogo
Em meio a plantações de preces
As catedrais de minhas ternuras cantam à noite sob a água
E esses cantos formam as ilhas do mar
Sou o caminhante
O caminhante que se parece com as quatro estações
O belo pássaro navegante
Era como um relógio envolto em algodão
Antes de voar me disse teu nome
O horizonte colonial está todo coberto de cortinados
Vamos dormir sob a árvore parecida com a chuva
DE REPENTE, 4
Jamais conheceste a árvore da ternura de onde eu extraía a minha essência
Brota de cada piso sem preferência
Em meio a uma discussão de pianos
E é tão bela como sessenta metros de água
Os olhos de circunstância
Olham o tempo esburacado
A pistoladas
Porém se não há ouvidos
Nossos olhos no entanto são garrafas
Esvaziadas em cada olhada
Pela noite guardemos os olhos em meu hangar
Mal-estar de instrumento escutem seu conselho
O arco desliza desliza nas escalas do sonho
Mal-estar meio-dia
Procura bem sob as cadeiras
Procura bem sob as pontes
Há pedaços de alma serrados por meu violino
DE REPENTE, 18
Aqui me tens a bordo do espaço e longe das circunstâncias
Ternamente como uma luz eu me vou
Até o caminho das aparências
Voltarei a sentar-me nos joelhos de meu pai
Uma bela primavera refrescada pelo silêncio das asas
Quando os peixes destroçam o telão do mar
E o vazio se infla como um olhar virtual
Voltarei sobre as águas do céu
Gosto de viajar como o barco do olho
Que vai e vem em cada piscada
Seis vezes já toquei o umbral
Do infinito que fecha o vento
Nada na vida
A não ser um grito de ante-sala
Nervosas oceânicas por desgraça nos perseguem
No berço das flores impacientes
Se encontram as emoções em ritmo definido
DE REPENTE, 21
Sua voz sobe ao longo das chuvas
Pedindo socorro a bordo das inconsciências
Esta noite vieram
Roubar o silêncio
Como uma lavanderia
As viagens dos sonâmbulos em luz de finura
Respiram minhas divagações
Quando chegam os poetas com os rios amigos
Para levar as almofadas da ternura
Ponho sapatos novos em minhas canções
Os ladrões buscam pirâmides nos olhos em calma e sem música
Nos belos olhos dos dromedários
Ou nas espirais de ar
Que deslocam as bailarinas geográficas
DE REPENTE, 29
A noite desce do céu como um globo
Como um globo cheio de viajantes inauditos
Um bandolim toca sobre o universo
Suas emoções desmontáveis que formam dobras
Nas capas superpostas da atmosfera
Que sejas tecedor de chuvas
Ou então flor esquecida de automóvel
Apesar de tudo somos bons amigos
Unidos pela corrente interna de dores paralelas
Canta conosco o álbum de ecos ou o missal
E depois sal de tua alma em calor de antigamente
As preces e os cintos de eflúvios sensuais
Tua alma é ventríloqua como os vulcões
Esquece-me
Pequeno astro oculto
A esta hora embalsamo meu bosque
Esquece-me
Piloto sem navio e sem lei
Ao fundo de meus olhos
Cantará sempre o poeta afogado
Belezas esses poemas.
Parabéns, Floriano…