Alfredo Fressia (Uruguai, 1948 – 2022)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Uma das características das sociedades e da literatura rio-platenses, e falo da uruguaia, onde está inscrita a minha obra, é o cosmopolitismo, marca intrínseca que a distingue imediatamente do resto do continente (mesmo da literatura de idioma português). Se eu mencionasse algumas correntes estéticas hispano-americanas, ou alguns poetas, mesmo os gigantes, um Vallejo, digamos, acabaria estreitando o campo de interações estéticas a partir do qual se escreve. Isso é potencializado no meu caso por aquela formação francesa (ou afrancesada, ou francezoide) que tive desde criança, e aquela binacionalidade em que vivo, a de ser uruguaio e brasileiro, e não só legalmente, essa fronteira móvel que também significa não ser nem um nem outro, ou pelo menos escrever de um lugar rebelde, com referências árduas. Por tudo isso prefiro responder de forma mais abrangente. Se há um jogo dialético entre clássicos e românticos, que por vezes ocorrem na mesma diacronia literária; se há uma espécie de dupla estrutura no genoma poético, que inclui, por um lado, a pesquisa formal, o trabalho do significante, até a exacerbação, até mesmo a intolerância, e, por outro, o jogo complexo de significados, tantas vezes sujo pela vida, pela história, e resgatada pelo poema como organismo histórico; então, eu me inscrevo sem hesitar nesse segundo círculo do DNA poético, mas sabendo que a estrutura genética é uma, e que o privilégio excessivo de uma dessas linhas e o consequente desprezo da outra é uma espécie de arrogância, do pecado mortal cuja vítima é a própria poesia.

[…]
A literatura é feita por seres individuais, e solitários, pelo menos por ser flagrante na escrita. É por isso que as contribuições essenciais são tantas quanto o mesmo número de poetas. Não quero assim fugir do tema pela tangente, nem me limitar a apontar a importância internacional (que é uma noção rarefeita na globalização que se desfruta e se sofre hoje) deste ou daquele poeta em particular. Prefiro insistir no cosmopolitismo que mencionei, e do qual, aqui no Brasil, que é a minha situação, tanta falta se sente. Ou naquela outra característica da literatura uruguaia que não cabe no pequeno território do país. O Uruguai, e estou falando de sua literatura, sempre vai além de suas fronteiras, e também de seus vizinhos. Entra em casa como Perico (e é a casa dele) com os argentinos, e não se assusta com a mudança de línguas quando entra no gaúcho de João Simões Lopes Neto, para dar um exemplo, e ao mesmo tempo Lopes Neto é um avô inesperado daquele nativismo que é uruguaio, mas também passa pela Argentina. (E note que isso não acontece só com a literatura gaúcha; eu poderia citar a literatura urbana de um Dionélio Machado, por exemplo). Outro valor que deveria ter repercussão é que a cultura uruguaia sempre aberta, arejada, com uma leve auto-referência, e que, tão oposta à brasileira, sempre isolada, bastante incapaz de dialogar, muito menos, oh paradoxos, com os irmãos, como se a sociedade brasileira desconhecesse que eles ocupam metade do território da América do Sul, e que o fazem com enorme originalidade. (Desculpem sair do assunto, mas falar do Brasil é quase inevitável no meu caso).

[…]
Acredito que as relações são mais próximas do que se imagina no caso do Brasil. Mas é verdade que há uma reclamação geral, talvez decorrente da incapacidade (provisória, sem dúvida) de assumir o fim dos centros e das periferias. Vamos pegar os suplementos culturais das grandes capitais do continente. Frequentemente, o que vemos é um grupo de formadores de opinião bastante deslumbrados e obedientes ao que se faz na Europa (e nisso o Brasil se supera: se trata de caricatura). Outra hipótese: provavelmente o que inibe essas relações é pura e simplesmente que a unidade da América Hispânica seja um mito. Caro, como todos os mitos, com consequências estéticas em vários momentos, como todos os mitos, dramáticos, com inimigos em comum, como em todos os mitos. E, como em todos os mitos, sempre se quer fazer dele realidade.

ALFREDO FRESSIA / “Em defesa da poesia”, Projeto Editorial Banda Hispânica, s/d.


ECLIPSE

Sabias que esta noite chegaria, a do sistro de calcário
jazendo na caverna, em silêncio os lobos
e os homens de mãos de artífices, tão destros
na arte de morrer.
E tu, ali fora, te surpreendeste ferido pelos astros?
Já não palpitam, não são almas onde fugaz fugia uma paixão, desta vez
nasceram opalinos ovos do eclipse, esperando se abrirem
na queda. Cairão sobre a terra que pisaste, planetas ocos
da primeira quadratura, pedras rotas sobre o cristal que havias historiado
com tuas velhas cenas de caça em Nínive.
A hora chegou, já viste demasiado o pergaminho de teu céu.
Já sabes que teu peito em negativo não acusa coração nem família nem nada
de sagrado, irremediável Fressia, apenas essa ostra celeste feita de tempo,
minguante madrepérola (não repitas a má sorte no eclipse)
onde sempre tornava a nasceu teu pai, inutilmente indagando
por um filho, sua mensagem no tempo, marcas digitais contra o vidro
embaçado de futuro e eras, garrafa ao mar, tragada pelo torvelinho,
dorsal, desde os Apeninos ao pampa.
Não nos fixemos em detalhes, isso
era o futuro, já o sabias refugiado no ventre do bisonte:
eras homem e mulher, e o céu foi um deserto
onde ardeu por meia hora a fogueira fria de teus ossos,
e estava escrito que não haveria bordas nem destino
nem esperança de morrer cercado de teus filhos, o semicírculo acossado
desde antes de nascer. Não te vejo acariciando seus brancos esqueletos,
tuas crianças mortas (desde jovem choravas), canções para dançar
entre os dentes de papel do dragão chinês, tão brando
como as luas rupestres de cada aniversário, recém nasciam,
eram as últimas sombras do eclipse, enquanto o sistro, Fressia,
seguirá te esperando, rajado entre as tuas mãos.


GULA

Porque amo e porque admiro eu devoro.
Os outros não acumulam livros, mapas,
selos, bonecos, fotos sem decoro,
amuletos, santos de porcelana?
Não sou mero glutão que por seu inri
consome em alimentos toneladas
nem sou o sibarita inverossímil
buscando uma delícia inominada.
Meu desejo é o mundo em minhas entranhas,
ostras vivas encrespadas ao limão,
o verde deslizar das plantas,
os peixes venenosos do Japão.
Engulo a selva em cada fina relva
e a mim se entrega dócil um antílope:
de noite ao sabor de uma ceia
me apodero do sol na planície.
Quero que o centro de meu corpo seja
túnel do mundo e nele flua a vida.
A obra de Deus se expulsa na poeirada,
porém antes a salivo e me acaricia.
Desamparado e vil, tão breve o corpo,
não busco o alimento, busco paz,
por dentro estou vazio e é obeso
o pecador, o deleite e o manjar.


FRACASSO

O poema chegou tarde, a pedra
lançada ao azar do tabuleiro, e ascendia ao nascer
na violência de um vulcão, o do basalto
em bruto, como escuro paralelepípedo,
era rosado o de granito,
paralelepípedos de minha infância
que não evocam nada
e o poema emanava sem respostas, cobria
o empedrado, entre o futuro
e a rua Marsella, orvalho
nas manhãs sobre a pedra que girava
entre o branco e o negro, sibila
de meu bairro, pedra rota
que já não lê nada
na lava endurecida do poema.


DIÁRIO DE CAÇA

Durou toda uma noite. Navegamos
muito além das colunas, longe dos bosques
onde se ri uma deusa e as estrelas
sem memória apontavam para o calendário. Eu roubo as pétalas
das plantas carnívoras do jardim das delícias.
Espreito sobre a escotilha, enfio colares vegetais
para os tripulantes de efêmeras gargantas. Meus dedos ágeis
seguem a linha sinuosa no elzevir:
estes são os rios de Babilônia, sobem-se
em busca do esquecimento e retornam sempre
soberbos como um planeta. Às vezes eu me detenho
nos jardins suspensos do império, e exercito
a morte em meus últimos torneios de montaria.
O Centauro me afiou os dentes e as unhas, tenho
a avidez de treze luas cheias, e da viagem recordo apenas
umas cartas de navegação naufragadas, uma caçada
de altura e o canto dos marinheiros.


PREPARAÇÃO DE UM JANTAR

Com o olho iridescente da boneca chinesa,
aquela da seda inconsútil como pele, aquilato
o reflexo jade das veias, em repouso
as aves à la campagnarde. Contemplo por muito tempo
a luxuriosa interrogação dos pescoços
para executar habilmente a fina arte de fatiar.
Examino as asas sobre a mercadoria do trinchador.
O leque de malaquita lisa
esconde as respostas.

1 comentário em “Alfredo Fressia (Uruguai, 1948 – 2022)”

  1. Bendigo este registro sobre e de Alfredo Fressia, esse enorme poeta e amigo, que infelizmente nos deixa. Lamentemos mais essa grande perda, e agradeçamos ao querido e atento poeta Floriano Martins por seu trabalho árduo, presente, constante, inigualável frente à literatura de língua hispânica e que agora eterniza ainda mais as maravilhas de Fressia. Viva a literatura!

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