Julio Herrera y Reissig (Uruguai, 1875-1910)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Não há que ser, como diz um moderno crítico espanhol, dos que maldizem e proscrevem as formas artísticas que não lhes são de fácil acesso ou que não vão bem com suas propensões e a índole de seus espíritos. A tolerância é uma saudação da inteligência ao desconhecido. Tolerar é amar o que se aproxima, e é aproximar-se do que vem. Ninguém pode ser juiz do que só deve ser julgado pela posteridade, e quem diz posteridade diz relatividade, e quem diz relatividade tropeça sem querer no infinito, no incomensurável. O que é o gosto, senão uma quantidade de alucinação, que entra pelos sentidos, educados por esta ou aquela época, e lacrados por convencionalismos mais ou menos efêmeros que se desmentem entre si a cada passo, invocando o nome da Verdade?
A Verdade artística!… Eis aqui uma expressão bem vulgar que a repetem todos os lábios, sem que os cérebros deem conta do significado que entranha.

A Arte é, como a bela mulher da fábula, um ser biforme que ensina a cada espírito e a cada época uma parte de sua natureza. Assim considerada, não admite axiomas, nem se deixa batizar no cenáculo de nenhuma teoria, por mais brilhante e racional que seja. É como um pássaro que necessita do ar livre para viver e que nem mesmo em uma gaiola de ouro emite um só gorjeio. A Arte ama a liberdade porque é filha dela. Aplicar-lhe parapeitos, é afogá-la. É como a luz que onde encontra uma opacidade só serve para produzir sombra.

JULIO HERRERA Y REISSIG
“Conceptos de crítica”, La Revista, Montevideo, 1899.


A NOITE

A noite na montanha olha com olhos viúvos
de cerva sem amparo que vela ante sua cria;
e como se assumissem um dom de profecia,
em um sonho inspirado falam os campos rudes.

Riscam o panorama, como espectros agudos,
três álamos em êxtase… Um galo alucina,
relógio de meia-noite. A grave lua amplia
as coisas, plenas de encantamentos mudos.

O lago azul de sonho, que nem uma sombra empana,
é como a consciência pura da montanha…
Ao pé da água límpida, que encrespa com seu alento,

Albino, o pastor louco, quer beijar a lua.
Vibra uma canção de ninar na horta sonâmbula…
Uivam aos diabos os cães do convento.


ILUMINAÇÃO CAMPONESA

Alternando a capricho o candor de suas prosas,
Ruth sugere à cítara tão augustos momentos!
E Fanos, em seu oboé de felpudas vozes
clama sob o ocaso de borboletas e ouro…

Ante o gênio enigmático da hora, sedentos
de impossível e quimera, no ar de rosas,
põem largo silêncio sobre os instrumentos,
para então sonharem a eterna música das coisas.

Largas horas, em transe de eucarísticos medos,
amortecem os olhos e se enlaçam os dedos…
“Doce amigo!”, ela geme. E Fanos: “Oh amada!”

E a noite iminente lambe suas mansidões…
E então, como sob o condão de uma fada,
fogos, por todas as partes, brotam sobre os cumes.


AMOR SÁDICO

Já não te amava, sem deixar por isto
de amar a sombra de teu amor distante.
Já não te amava e, no entanto, o beijo
da repulsa nos uniu por um instante…

Ácido prazer e bárbaro embelezo
crispou minha face, me desfigurou o semblante.
Já não te amava, e me turvei, não obstante,
como uma virgem em um bosque espesso.

E já perdida para sempre, ao ver-te
anoitecer no eterno luto
– mudo o amor, o coração inerte –,

intratável, atroz, inexorável, hirsuto…
Jamais vivi como naquela morte,
nunca te amei como naquele minuto!


A ALMA DO POEMA

Como uma velha estampa se fundia
em avermelhados tons de desenhos
religiosos a gama de amplos luxos
da paisagem espectral detrás do dia.

Tal uma pérola, a cidade surgia
sobre o golfo, ou os lilases reflexos,
e um grupo de ciprestes parecia,
sob o capuz, profundos cartuxos.

Piedosos, enclausuramos a leitura…
E acreditamos sentir como uma obscura
voz sobre-humana de inefável encanto,

que entrelaçara, em milagrosos versos,
elegia a elegia e pranto a pranto,
nossos destinos para sempre adversos!


AS PRAGAS

Era sua mão uma sentença. E me
arrastei como um verme…

– Aguça a vista, imbecil: brilha o crime nas adagas,
                                 frente a ti;
As emboscadas se encrespam no bosque. Dois chacais,
rosnam com ferocidade no rastro de tua inconsciência febril!
                                – Não posso, não.
A noite de teus olhos já caiu sobre mim!…

– Um passo a mais e amanheces, néscio farrapo de argila!
O cume canta tua glória como um branco macaquinho.
Não alentes, fecha as pálpebras! Sob teus pés, o abismo
polariza seu olhar criminoso de Caim.
                                  – Não posso, não.
A vertigem de teus olhos caiu sobre mim!

– Seduzido, o polo te arrebata. Sobre a branca gangrena,
crava teu passo a insígnia do atavismo viril!
Glória a teu nome: Adiante, cretino, com a tua ossada!
A aurora boreal coroa tuas audácias de réptil.
                                   – Não posso, não.
O inverno de teus olhos caiu sobre mim!

– Rema com gênio, insensato! A epilepsia constringente
do oceano te cospe. Irrompe com raiva, infeliz!
A matilha das ondas grita o drama de teu sangue
e na goela de algum monstro logo irás sucumbir!
                                  – Não posso, não.
A tempestade de teus olhos caiu sobre mim!

– Canceroso de soberba, mordido pela neurose:
ergue ao Céu tuas náuseas. Rende a iracunda cerviz!
Primaveriza, cadáver amável de ilustre crápula!
Deus te concede um minuto cordial para ser feliz.
                                  – Não posso, não.
A maldição de teus olhos caiu sobre mim!

– Condenado arrepiante, onde vais e onde pisas
                                  a alegria tem fim:
cão escravo de ti mesmo, réprobo infame, liberta-te
de tua infecção luminosa, saboreia a paz, Anjo ruim!
                                  – Não posso, não.
O inferno de teus olhos caiu sobre mim!

– Quanto sofres, deus leproso do coração; é horrenda
a vigília suicida de tuas chagas, alma vil!
Depõe tua vida, covarde; beija o asco da morte:
entra em minha tumba de esquecimento e deixarás de existir!
                                  – Não posso, não.
A eternidade de teus olhos caiu sobre mim!

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