3 Poemas de Tatiana Oroño (Uruguai, 1947)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Tatiana Oroño nasceu em San José, Uruguai, em 1947. Poeta, professora de Língua e Literatura Espanhola, com mestrado em Literatura Latino-americana. Obra poética publicada: El alfabeto verde (1979), Poemas (1982), Tajos (1990), Bajamar (1996), Tout fut ce qui ne fut pas (2004). Sobre ela comenta o poeta e ensaísta uruguaio Luis Bravo: “Tatiana Oroño é uma voz referencial na poesia uruguaia atual. A contenção formal, a sensibilidade precisa e a intimidade pensante nutrem o corpo de sua escrita. A consciência da linguagem como seu próprio corpo faz com que sua poesia apareça como (in) carne de si: “escreva para ser um, tome corpo”. Sua poética aborda o emocional a partir de uma certa distância enunciativa. Assim, os infinitivos e os usos reflexivos ocupam o centro do palco: “Dar conta de ser insistente / em dar / certas razões / de ser”. Não é por isso que é impessoal, mas sim porque a sua matéria verbal transfere o carinhoso sem a imposição enunciativa do eu: “a poesia é / quando não a ofusque / quando me filtra / porosa / persuadiu / não eu, este comportamento / esta forma sustentada / dentro / fora”. A sua observância reflexiva surge em torno da circunstância de ser e ser mulher entre as coisas e acontecimentos do quotidiano. Mas esse entorno não é um mero registro do entorno / circunstancial, mas sua maneira de “derramar em direção a / um centro / sem coroa ou prêmio // (…) / em direção a um centro pulsante infalível”. O resultado é um aviso esparso que mantém a denotação curta enquanto a relutância filtra o não dito entre o que é dito. É assim que o explicita em “Palafitos”: “As palavras baseiam-se no que ainda não foi dito, no que se disse a meio e no que não se pode dizer.” Com apurado sentido de composição plástica, seus versos se espalham no branco da página, oferecendo aquele espaço como uma reverberação da voz escrita para quem a lê nas entrelinhas. De sua poesia, Gérard Blua (prefácio a Tout fu ce qui ne fut pas) disse: “uma espécie de confiança para ouvir o outro, para que amanhã não seja uma grande diferença”. Só que essa confiança em Oroño não é confessionalismo, mas um relato lúcido do que falta descobrir entre as palavras: “um tecido da alma / não utilizado”.


O QUE HÁ É O QUE FALTA

Não posso contar porque o que tenho para contar não está, não se produziu. É o que se produz quando escrevo.
Melhor dizer: há uma história. A das sombras da mão, a do calor que a mão desprendeu ao se mover buscando. É uma história fora dos fatos contados que – como a sombras – está fora dos corpos.
Eu me empenho em encontrá-la. A história é essa.


[TOMEI O ÚLTIMO POSTO]

Tomei o último posto. Fica, me disse
a voz da experiência
ou outra. Atrás
crianças de névoa, às minhas costas, cegos

mortíferos
anjos. As coisas

cheiram mal. O inerte cheira.

É um recanto, cabide, prateleira, tênue película
de cadáveres
sob o caixão movido. O interstício é dobra. Minha casa
de fantasmas, taça
que faço soar. Chocalho. Último posto. Cada um

deixou atrás
coisas
que o desuso
violou. Que o abrigo maculou, o zelo de sentir sua falta.

É nebulosa opinião. Custodiar distritos despovoados de família
não é salvação. É posto
de fronteira. É tarefa compulsiva, tara de pouca monta
alinhar os confins
de sua abóboda.

Ao soar da hora
trocarão
as relíquias por despojos. Por roedores
os cavalos pateantes
suados. Os cadernos de escola
em letra pantanosa.


RENDA DE BRUGES

Na minha família éramos laicos, pessoas sem festa de comunhão ou batismos, nem aquela ilusão de vestidos brancos que os outros compartilhavam. Mas, aos 7 anos, senti o chamado da fé. Com as pontas dos dedos, estendi a mão a um padeiro à deriva. Porque sabia que se arrancasse a semente, um pequenino pão invaginado no pompom leve, eu poderia lhe pedir um desejo. Pedi que meu pai voltasse e risse dela, porque uma mãe sem riso é algo complicado. Deixei no ar e lá ficou, suspenso, indeciso. Soprei para que o desejo fosse levado a seu destino. Que não poderia ser outra coisa senão a boa vontade de Deus. Quem tinha que estar do meu lado.

Anos depois, escrevi o nome de um homem em um vidro embaçado. O vidro era quase tão alto e largo quanto a parede. Lá fora, a noite. Na superfície fria e condensada, descobri cartas que retaliaram contra o futuro imprevisível, perfurando o céu com a escrita bordada na ponta de meu dedo. Tenho certeza de que os poderes postos em prática por aquele feitiço eram de natureza inviolável. Coloquei o céu de modo indelével em papel vegetal. É assim que se bate, compreendi, nas portas do coração da misericórdia. De dentro desta casa triste e com um só dedo gravar um nome na memória do céu é cair de joelhos sem dobrá-los.

Anos depois, o filho ligou para ela do exílio no México. Ela me contou por que manteve o jardim tão arrumado por todos aqueles anos, podando, enxertando e transplantando, o ano todo com as costas curvadas. Quando ele me confidenciou que estava trabalhando para que no dia em que chegasse achasse tudo bonito, como sempre, eu entendi.

Eu também ajo assim. Semelhante. Ninguém virá no Natal. Mas estreei a toalha de mesa amarela. Cobri o pão doce com o guardanapo bordado na Espanha. Ele também nunca foi usado.

Duas peças esculpidas com a arte da renda de Bruges.

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