3 Poemas de Rafael Courtoisie (Uruguai, 1958)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A primeira impressão que tive quando comecei a ler Antologia Invisível de Rafael Courtoisie foi contemplar uma série de esculturas medievais que tomam a forma de um bestiário refinado; não daqueles encontrados em catedrais góticas, mas daqueles que saem da pena de um artista que usa a palavra em vez do cinzel e da pedra. E quando digo bestiário, não estou dizendo que os seres a quem o poeta dá vida saem do submundo ou são orcs; pelo contrário, são seres possuídos pela beleza.

BERTA LUCÍA ESTRADA


Os poetas são os principais responsáveis por uma situação de endogamia. Não é ruim que existam poetas que escrevem para poetas e poetas que aspiram a um público em geral. A questão é que a polarização maniqueísta entre elitismo e populismo deve ser evitada. Essa divisão é simplista, negativa. Sem renunciar ao livro como objeto cultural, o que é válido, a poesia deve ser trabalhada nas múltiplas mídias que se apresentam, e deve-se estimular a necessidade poética, ou seja: que a poesia não seja apenas escrita e lida, mas também ressignificada nos campos de poder literário. Poesia é um artigo de primeira necessidade. Seu valor simbólico vai muito além do ornamental, está na raiz de um tipo de bem-estar a que nossas sociedades não devem renunciar.

RAFAEL COURTOISIE
Fragmento de entrevista concedida a Augusto Rodríguez, 2008.


INÉDITO DE CLARICE LISPECTOR

MULHER NUA NO PARAÍSO

A esta hora sou uma mulher adormecida no Paraíso, vejo-me respirando, vejo os meus olhos fechados que não veem a maravilha: tudo o que me rodeia é tão claro que parece ser de vidro, as plantas, os animais ferozes e os pássaros são transparentes, rígidos e quebradiços.
Meu próprio sonho é dessa substância límpida e luminosa, feita de lágrimas duras e curvas de uma mulher humana.
Meu sonho é feito de gotas sólidas, as gotas caem no chão, explodem, se despedaçam, desperto banhada em lágrimas, em suor, em garoa de mim, do que sou: uma pobre mulher nua que dorme e sonha com o Paraíso, e quando acorda acende, com suas partes obscenas, com a língua do pensamento, o fogo úmido de seu desejo.

Clarice Lispector

(Fragmento com que começa o romance inédito Água branca, tipografado em máquina de escrever que tinha o “e” defeituoso – lhe falta uma parte da parte inferior da curva inferior – encontrado no sebo Além de tudo, localizado na rua Cobra 283, centro do Rio de Janeiro, 2083.)


INÉDITO DE RAFAEL COURTOISIE

LA PETITE MORT

Se os tiranos tremem, os reis
Do baralho, os tíbios, os terrestres,
epifânicos, os egrégios, os eruditos
os velhos, os doces, os curtos
de entendimentos
e as donzelas
com a primeira
carícia
na virilha
por que não deveria tremer a terra?
que pisamos, o pó
das estradas, o pó
que nos faz gozar e o pó
que somos
e nós seremos?
As estrelas não tremem
idiotas à distância?
Vou esquecer
as palavras
mais débeis
esta noite.

(Escrito à mão encontrado entre os escombros de sua cabana. Montevidéu, 25 de novembro de 2016)


INÉDITO DE FRANZ KAFKA

SAMSA MOUTH UP

A esta hora a noite começa em algum lugar
de mim, sob os fragmentos, sob o manto
da minha concha o dia humano morre
começa uma sombra violenta, espessa
uma linfa corre pela minha alma, as mãos
que não tenho oram para um deus que não existe.

Perninhas, vários pares de perninhas para cima
movendo desesperadas o silêncio. Ouço
passos. Vem meu pai, o pai
do inseto
com a morte na cara.

Franz Kafka

(Manuscrito em alemão entregue por Max Brod a Margaret Brausen, que lhe deu em 1958 à editora Leichbach para uma “Biografia de um gênio fraco”, livro que nunca foi publicado.)

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