Enrique Verástegui (Peru, 1950-2018)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Comecei a escrever poesia pelas mesmas razões que agora a escrevo: desde minha infância, e mais, desde minha adolescência, minha relação com a natureza foi estreita e, inclusive, sagrada de tal forma que continuo erguendo os olhos ao céu para, nessa taça invertida, de cor azul transparente, encontrar as respostas ao mistério que significa a vida. Entre o adolescente e o homem que não deixou de ser o belo adolescente capaz de todos os propósitos não há, até o momento, nenhuma diferença, isto porque, em princípio, me interessa conservar esse estado de graça que me permite o acesso à consciência de que sou eterno e de que, escrevendo poesia – exercitando-a ao piano, praticando-a diariamente, fazendo-a aparecer desde os mundos profundos de onde vem –, vivo não somente a experiência da eternidade como também a da eterna juventude. Essa juventude tem um caráter mais metafísico do que biológico, apesar de que mesmo agora, aos meus 44 anos, as senhoras, ou mesmo os homens, me elogiam dizendo que não aparento mais de 25 anos, o que não faz mais do que confirmar minha crença de que a poesia mantém jovem aquele que a cultiva. Uma juventude metafísica que em nada se encontra divorciada da maturidade, à qual acedi desde muito jovem porque, paradoxalmente, de outra forma não se poderia escrever poesia. Assim, se minha adolescência encontra seu reflexo na maturidade da página, meus olhos encontram uma fascinante analogia entre a taça invertida do céu, onde no mais das vezes me abismo, e essa outra taça de cristal que, também invertida sobre a mesa, convoca a presença invisível dos espíritos porque, precisamente no momento em que estou erguendo os olhos ao céu, não estou fazendo outra coisa que comunicar-me com esse infinito de cuja matéria brilhante estão feitos nossos corpos. Somos, por isto, seres de luz e, porque temos a consciência de que é assim o é, escrevemos uma poesia capaz de ser lida pelo próprio Deus no céu. Não é que não tenha a segurança de ser lido pelo próprio Deus no céu, mas sim que, igualmente, sei que estas mãos que teclam agora a máquina estão possuídas pelo Anjo da inspiração que me permite transcrever à página o ditado misterioso de Deus que, dessa maneira, se dirige à sua criação e nos propõe o milagre da eternidade através do exercício da poesia. Uma poesia que, por isto, possui todo o caráter da música angélica: ela é conhecimento, revelação, profecia. Exatamente o que foi a poesia desde sempre, quando o poeta era o profeta, o vidente, o xamã, e o mago da tribo, muito antes de que as instituições religiosas o expulsassem do Paraíso, convertendo-o apenas em um ser errante por um mundo menos interessante que o céu que ele convocava. Só que esse mundo profético que torna a aparecer na poesia o faz agora de mãos dadas com a produção científica, não somente para evitar o divórcio entre o sagrado e a matéria, como também, e sobretudo, para evitar um desvio positivista que se negue a aceder ao mundo sobrenatural do homem. Por isto, e porque eu mesmo me inscrevo no movimento da New Age, publiquei há pouco os três volumes de um livro maior intitulado Ética – que tem 900 páginas em idioma castelhano, e que se encontra estruturado da seguinte forma:


I. Monte de goce, que trata do pecado;
II. Taki onqoy, que trata da redenção; e
III. Angelus novus, que trata da virtude

– para, nesse livro tão extenso, expressão não somente o conhecimento como também o convite divino a uma realização pessoal, ao mesmo tempo que a uma experiência de felicidade aqui na terra. O livro certamente é bastante complexo pois, produzido em um mundo tão complexo como o nosso, não podia senão expressá-lo através de uma forma – a mesma de Bach, Orff ou Haendel – que o contivesse. Passei boa parte de minha vida escrevendo esse projeto e, agora que está terminado, agora que a Ética está publicada, contemplo o livro com a mesma serenidade com que contemplo o céu, porque uma coisa me parece clara: a Ética me foi ditada pelo Anjo Jerudiel, Anjo do planeta vênus que, tendo se revelado a Enoch em tempos antiquíssimos na bela Israel, foi transplantado ao mundo americano pelos jesuítas no século XVI, apesar de que a própria Igreja europeia havia proibido seu culto. O Anjo Jerudiel, e toda a série angélica revelada a Enoch, aparece na pintura americana que se pintou por esses séculos, e agora reaparece para inspirar a Ética, “um código moral para sobreviver neste fim de século, cujos evidentes modelos são nada menos que Dante e Pound”, como disse José Miguel Oviedo; um livro ambicioso entre todos aqueles que foram escritos na América Latina ao longo de toda a sua história. Dentro em breve sairá um quarto volume: Albus, que está dedicado à gnose mística e que encerrará, como se se tratasse de um círculo – um daqueles círculos sobre os quais ergueu sua teoria Plotino –, impecavelmente, o projeto total da Etica. Esse conhecimento se revela, assim, ao leitor do final deste milênio e do início do próximo, para precisamente outorgar-lhe a felicidade, a eternidade e a sabedoria. Isto há sido porque, deixando-me inspirar pelo Anjo Jerudiel, sou não-dualista ali onde não encontro diferença entre meu corpo e minha alma, ou mesmo entre meu ser e Deus, como diz a filosofia Vedanta da Índia, e porque se trata não somente de uma concepção ideal, mas também de um ideal feito realidade no afazer de minha obra e no ser da pessoa que efetivamente se comunica com os anjos.

ENRIQUE VERÁSTEGUI
“Arte poética”, maio de 1994.


POEMA DE WALICHA

Todo corpo se aloja em sua noite,
e a paixão, se não a beleza, estremece minha vida,
uma flor pensativa, tua vulva onde se não a loucura,
o mar – uma flor em tuas mãos – brota
por trás da cortina onde não eu, meu ser, o desejo
as labaredas de lilás que saem do espelho
se apoderam de teu corpo, um mundo que geme, para sempre.
O céu – candelabro na noite – são não o céu,
teus gemidos que giram, mordiscos violáceos, sobre minha pele
que, detrás do espelho, floresce – mar em chamas – em teus lábios,
morangos provados como a champanhe esta noite,
um prado em chamas como o crepúsculo de onde brotas,
esbelta, feliz, distante antes de ser desnudada,
bela como o violino na primavera, a flor solitária,
onde se condensa o universo, o mistério
de existir como esta música no silêncio
da noite, um entardecer com lilás nas mãos,
por trás dos olhos, te esperando, como quem se separou
de seu passado para encontrar-se com o mar,
uma giesta nas ruas, solitárias, fatigadas,
ali onde teu corpo é uma paisagem montanhosa,
o magma onde não eu, nem tu, essas florações
do ser, a solidão, a melancolia, esta nostalgia
nos arremessam sobre nós mesmos, a música,
o céu estampado em uma janela, árvores,
relva com flores, de onde contemplo a melancolia
de existir fora da noite, destroçando-nos,
beijando-nos como se não déssemos o adeus,
a orquestra de lilás, a última rosa,
o champanhe, os morangos, antes de sair à rua,
retornas a teu passado porém resta esta flor nas mãos,
quando saio do espelho, e já é noite,
a América do Sul delira em teus olhos, Walicha.


ANOTAÇÕES EM UM LIVRO DE NIETZSCHE

1 – Definição da história

Escombros do futuro são
quartéis, decretos-leis, Estados,
geopolíticas que são vestígios
do passado: ao poder pertence
esta norma, à humanidade transgredi-la.

2 – Reflexão do ofício

Que é um tema? – nada.
A poesia? – tudo.
No equilíbrio frágil entre o nada
e o tudo
resplandece
intacta esta verdade do poema.

3 – A estética diz:

Se ninguém encontra a mesma luz
no poema, o inquisidor sempre tratou
de achar escuridão.


ECONOMIA DO TRAÇO

Talvez traçou um círculo em sua memória.
Necessitou inventar muito barbaramente o mito
para aperfeiçoar sua obra sem contradizer
o natural: um belo círculo preciso
girando o índice sem mover a ponta
do cotovelo em terra como o Giotto clássico
que agora se produz na oficina artesanal.
O navegante o conheceu nas estrelas.
O montanhês no arco do sol.
O pó do caminho foi a página onde
o caminhante se perdeu e encontrou sua rota
fincado no mapa de terra que não teve.
Ali onde cai o Arco-Íris fica o saber.
Onde o sol se oculta um esplendor se mostra.
A mulher jorra sangue no ciclo lunar.
O arco da vida se desdobra como um cerco
de pedra onde o destino se perdeu.
Aqui e acolá o mesmo arco resplandece.
Eterno princípio da intacta simetria.
A matemática vista na modesta oficina
encontra sua real luz manual do teorema.
Ubiquidade do saber como um deus
livre eleva-se aqui em um Paraíso de letras.
O círculo mais que loucura outra
forma foi do perfeito – rodava
na memória do campo e da urbe.
Não foi um acidente – obra pura e natural.
Era o círculo divino como o sol vital.
E mais que vital era como o sol divino.
O belo círculo brotou sem história
sem arte e com geometria e custou sangue:
um princípio do trabalho artesão.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!