Curadoria e tradução de Floriano Martins
A poesia indaga a mutante realidade e seu protagonista, neste caso o ser humano, chame-se poeta ou não, envolto pelo tempo e espaço, duas categorias da matéria.
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Honduras forma parte importante do território poético centro-americano. A maioria de suas vozes são masculinas. Clementina Suárez constitui uma exceção. Aliás esta poeta foi assassinada em 1991. O assassino ainda está solto. Roberto Armijo destaca em seu romance El Asma del Leviatán alguns elementos de origem hondurenha, já que seu pai nasceu em Honduras e conheceu de perto acontecimentos históricos deste país. Eunice Odio, de nacionalidade costarriquense, não pertence à mesma geração de Claribel Alegría, poeta nicaraguense que se autoconsidera salvadorenha. Efetivamente, nasceram depois de Clementina Suárez, quem nasceu no princípio do século passado. Clementina Suárez, Eunice Odio e Claribel Alegría enfocam a realidade centro-americana a partir de diferentes óticas. Todas elas impulsionadas por suas respectivas realidades, se bem que compartilhem o testemunho, a denúncia e uma comum ideologia política própria de seu tempo e circunstância.
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Não creio que a poesia, o ato criador possa chegar a ser bloqueada por nada nem por ninguém. A realidade, observada ou meditada é suscetível de ser poetizada: desde um rato até uma menina de cinco anos mexendo num lixão; existem numerosos exemplos registrados ao largo do fazer poético mundial. Os limites unicamente os levantam a cegueira e a pretensão. Se me declaro plenamente identificado com a sociedade hondurenha é pela simples razão de que minha visão do mundo parte deste território. Por outro lado, as técnicas emprestadas ou assimiladas ao surrealismo ou à geração Beat ou de Pound não são mais que fatores técnicos ao serviço da busca da realidade expressada em termos artísticos válidos, transcendentes.
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Tenho afirmado que o instinto é um elemento absolutamente válido para entender a realidade convertida em arte. Isso porque nenhum reflexo animal possui a rapidez do instinto. Seu equivalente modificado é a intuição, em íntima relação com o anjo. Falo do poeta como anjo. A poesia dos últimos tempos tende a desangelar-se.
ROBERTO SOSA
Fragmentos de “O poeta e os limites do fogo”, entrevista concedida a Floriano Martins, 2001.
OS CLAUSTROS
Nossos caçadores
– quase nossos amigos –
nos ensinaram, sem que jamais se equivocassem,
os diferentes ritmos
que conduzem ao medo.
Fomos amestrados com sutileza.
Falamos,
lemos e escrevemos sobre a claridade.
Admiramos suas sombras
que logo aparecem.
Ouvimos
os sons dos chifres
mesclados
com os ruídos suplicantes do oceano.
No entanto,
sabemos que somos os animais
com grinaldas de horror no corpo;
os fatiados a sangue frio; os que dormiram
em um museu de cera
vigiado
por manequins de metal violento.
DEPOIS DOS ENCONTROS
Sobrevivo e envelheço.
Respiro
o ar quieto das fotografias.
Cruzo pontes estendidas sobre dois vãos.
Tropeço
e caio envolto
em laços repentinos
dispostos
por alguns advogados de olhar putrefato.
(Os rostos aumentam
ou desaparecem
com absoluta falta de mistério.)
falo com camponeses,
com ocultos banqueiros;
com mulheres loiras inclinadas nas flores.
Com poetas já vencidos
pelo vinho e pela noite
que cortam a lua de um só talho.
Vejo na cidade um quadro vazio.
E advirto
lentamente
que se enche de chumbo meu esqueleto.
O AR QUE NOS RESTA
Sobre as salas e janelas sombreadas de abandono.
Sobre a fuga da primavera, ontem mesmo afogada
em um copo d’água.
Sobre a velhíssima melancolia (tecida
e destecida longamente) filha
das grandes traições contra nossos pais e avós:
estamos sozinhos.
Sobre as sensações de vazio sob os pés.
Sobre os corredores inclinados que o medo e a dúvida edificam.
Sobre a terra de ninguém da História: estamos sozinhos
sem mundo,
desnudo na carne viva o barro que nos cobre, estreito
em seus dois lados o ar que ainda nos resta.
ESTA LUZ QUE SUBSCREVO
Isto que subscrevo
nasce
de minhas viagens às imobilidades do passado. Da sedução
que me causa a ondulação do fogo
igual
aos primeiros homens que o viram e o submeteram
à mansidão de uma lâmpada. De fonte
onde a morte encontrou o segredo de sua eterna juventude.
De comover-me
pelos curtíssimos gritos decapitados
que emitem os animais enfraquecidos a ponto de morrer.
Do amor consumado,
desde a própria lástima, me vem.
Do gelo que circula pelas escuridões
que certas pessoas vomitam sobre meu nome. Do centro
do escárnio e da indignação. Desde a circunstância
de meu grande compromisso, vive como é possível
esta luz que subscrevo.
OS POBRES
Os pobres são muitos
e por isto
é impossível esquecê-los.
Seguramente
vêm
nos amanheceres
múltiplos edifícios
onde eles
queriam habitar com seus filhos.
Podem
levar nos ombros
o féretro de uma estrela.
Podem
destruir o ar como aves furiosas,
nublar o sol.
Porém desconhecendo seus tesouros
entram e saem por espelhos de sangue;
caminham e morrem lentamente.
Por isto
é impossível esquecê-los.