Curadoria e tradução de Floriano Martins
César Moro é uma das mais singulares vozes poéticas do Surrealismo. Poeta bilíngue, ele deixou a maior parte de sua obra escrita em francês. Poeta e pintor, em 1935 organiza em seu país a primeira exposição internacional do Surrealismo na América Latina. Posteriormente, em 1940, já residindo no México, Moro organiza, ao lado de Breton e Wolfgang Paalen, a 4ª Exposição Internacional do Surrealismo. Sua bibliografia inclui livros como Le chatêau de grisou (1943), La tortuga ecuestre e Los anteojos de azufre – ambos em 1958, póstumos. Nele pintura e colagem acentuam uma experiência com o automatismo. Teve uma tríplice residência – Lima, Paris, Ciudad de México –, em cada uma delas confirmando o papel de destaque por ele representado em ambiente surrealista, onde ingressou desde 1928, mesmo quando do grupo se afasta, anos depois, por desacordos com André Breton. Como decorrência desse afastamento, seu amigo e curador André Coyné observa que durante anos, Moro havia confundido surrealismo e poesia. A partir daí, oporá a poesia ao surrealismo, ou, melhor dizendo, desistirá de lhe aplicar qualquer cânone, reconhecendo-a à margem de toda qualificação. Em meu livro Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (2016) eu destaco a expressiva atuação de Moro junto ao Surrealismo, seja na organização de exposições e direções de revistas, como também na escritura de diversos textos sobre artes plásticas, em seguida frisando que houve um momento em que se tornou impossível o convívio com o dogmatismo heterossexual de Breton, principal aspecto a contribuir para sua dissidência do grupo em 1944. César Moro é um dos mais originais e expressivos poetas do Surrealismo.
VISÃO DE PIANOS COMIDOS POR TRAÇAS CAINDO EM RUÍNAS
O incesto representado por um diácono
Recebe as felicitações do vento quente do incesto
Uma roa fatigada suporta um cadáver de pássaro
Pássaro de chumbo onde tens o cesto do canto
E as provisões para tua cria de serpentes de relógio
Quando acabes de morrer serás uma bússola bêbada
Um cabresto sobre o leito esperando um cavaleiro moribundo das ilhas do Pacífico que navega em uma tartaruga musical divina e cretina
Serás um mausoléu para as vítimas da peste ou um equilíbrio passageiro entre dois trens que se chocam
Enquanto a praça se enche de fumaça e palha e chove algodão arroz água cebolas e vestígios de alta arqueologia
Uma frigideira dourada com um retrato de minha mãe
Um banco de relva com três estátuas de carvão
Oito laudas de papel manuscritas em alemão
Alguns dias da semana em cartolina com o nariz azul
Pelos de barba de diferentes presidentes da república do Peru encravando-se como flechas de pedra na calçada e produzindo um violento patriotismo nos enfermos da bexiga
Serás um vulcão minúsculo mais belo que três cães sedentos fazendo reverências entre si e recomendações sobre o modo de fazer crescer o trigo em pianos fora de uso
O CHEIRO E O OLHAR
O cheiro fino solitário de tuas axilas
Um excesso de coroas de palha e feno fresco cortado com dedos e tremoços e pele fresca e galopes distantes como pérolas
Teu cheiro de cabeleira debaixo d’água azul com peixes negros e estrelas do mar e estrelas do céu sob a neve incalculável de teu olhar
Teu olhar de pepinos do mar de baleia de sílex de chuva de diários de suicidas úmidos os olhos de teu olhar de pé de madrepérola
Esponja diurna na medida em que o mar cospe baleias enfermas e cada escada rejeita seu transeunte como a besta empesteada que povoa os sonhos do viajante
E golpes cintilantes sobre as frontes e a onda que apaga as centelhas para deixar sobre o tapete a eterna questão de teu olhar de objeto morto teu olhar apodrecido de flor
UM CAMPO DE TERRA NO MEIO DA TERRA
Os ramos de luz atônita povoando inumeráveis vezes a área de tua fronte assaltada pelas ondas
Asfaltada de luz tecida de pelo terno e de marcas leves de fósseis de plantas delicadas
Ignorada do mundo banhando teus olhos e o rosto de lava verde
Quem vive! Assim que durmo regresso de mais longe a teu encontro de trevas a passo de chacal te mostrando conchas de espuma de cerveja e prováveis edificações de nácar lamacento
Viver sob as algas
O sonho na tormenta sereias como relâmpagos a aurora incerta um caminho de terra no meio da terra e nuvens de terra e tua fronte se ergue como um castelo de neve e apaga a aurora e o dia se acende e a noite retorna e feixes de teu pelo se interpõem e açoitam o rosto gelado da noite
Para semear o mar de luzes moribundas
E que as plantas carnívoras não fiquem sem alimento
E cresçam olhos nas praias
E as selvas despenteadas gemam como gaivotas
A PERDER DE VISTA
Jamais renunciarei ao luxo insolente à devassidão suntuosa de pelos como feixes finíssimos pendidos de cordas e sabres
As paisagens da saliva imensas e com pequenos canhões de plumas-fontes
O girassol violento da saliva
A palavra designando o objeto proposto por seu revés
A árvore como uma lamparina mínima
A perda das faculdades e a aquisição da demência
A linguagem afásica e suas embriagadoras perspectivas
A logoclonia o tic a raiva o bocejo interminável
A estereotipia o pensamento prolixo
O estupor
O estupor de contas de cristal
O estupor de névoa de cristal de ramos de coral de brônquios e de plumas
O estupor submarino e suave resvalando pérolas de fogo impermeável ao riso como uma plumagem de pato diante dos olhos
O estupor inclinado à esquerda flamejante à direita de colunas de trapo e de fumaça no centro detrás de uma escada vertical sobre um balanço
Bocas de dentes de açúcar e línguas de petróleo renascentes e moribundas desprendem coroas sobre seios opulentos banhados de mel e de cachos ácidos e variáveis de saliva
O estupor roubo de estrelas galinhas limpas lavradas em rocha e terra firme mede a terra da extensão dos olhos
O estupor jovem pária de afortunada altura
O estupor mulheres adormecidas sobre colchões de cascas de fruta coroadas de finas correntes nuas
O estupor os trens da véspera recolhendo os olhos dispersos nas pradarias quando o trem voa e o silêncio não pode seguir o trem que treme
O estupor como chave-mestra derrubando portas mentais devastando o olhar de água e o olhar que se perde no sombrio da madeira seca Tritões veludos resguardam uma camisa de mulher que dorme despida no bosque e transita a pradaria limitada por processos mentais não muito bem definidos dissimulando interrogatórios e respostas das pedras desatadas e ferozes tendo em conta o último cavalo morto ao nascer da aurora das roupas íntimas de minha avó e grunhir meu avô de cara para a parede
O estupor as cadeiras voam ao encontro de um tonel vazio coberto de trepadeira vizinha do sótão voador pedindo o encaixe e o desaguamento para os lírios de pequena capa primária enquanto uma mulher violenta enrola as saias e mostra a imagem da Virgem acompanhada de cerdos coroados com tríplice coroa e laços de duas cores
A meia-noite depila o ombro esquerdo sobre o ombro direito cresce o pasto pestilento e rico em aglomerações de minúsculos carneiros vaticinadores e de vitaminas pintadas de árvores de fresca sombrinha com adornos e rolos
Os miosótis e outros pesados gerânios cospem sua miséria
O grandioso crepúsculo boreal do pensamento esquizofrênico
A sublime interpretação delirante da realidade
Jamais renunciarei ao luxo primordial de tuas quedas vertiginosas oh loucura de diamante
O MUNDO ILUSTRADO
Igual à tua janela que não existe
Como uma sombra de mão em um instrumento fantasma
Igual às veias e ao percurso intenso de teu sangue
Com a mesma igualdade com a preciosa continuidade que me assegura idealmente tua existência
A uma distância
À distância
Apesar da distância
Com tua fronte e teu rosto
E toda a tua presença sem fechar os olhos
E a paisagem que brota de tua presença quando a cidade não era não podia ser senão o reflexo inútil de tua presença de hecatombe
Para melhor molhar as plumas das aves
Cai esta chuva de bem alto
E me encerra a mim sozinho dentro de ti
Dentro e longe de ti
Como um caminho que se perde em outro continente