Curadoria e tradução de Floriano Martins
Mario Meléndez é chileno, mas já morou no México e na Itália. Ele tem o sobrenome de um poeta neoclássico, mas a aljava de sua poesia contém flechas muito modernas que apontam para o coração do século XXI. A beleza que habita em seus versos é diferente, talvez única. É feita de surpresas, de jogos de linguagem mais ou menos sofisticados (dependendo do objetivo definido em cada verso). É uma poesia muito pan-americana, muito telúrica, mas ao mesmo tempo delicadamente surreal. Seus poemas são como uma pintura de Magritte pintada no alto das montanhas andinas, em um ninho de condores.
LUIS ALBERTO DE CUENCA
Uma poesia sólida, com um uso eficaz da linguagem; sempre perturbadora e às vezes assustadora, mas não sem humor, coloca o poeta chileno Mario Meléndez na vanguarda de sua geração. Uma poesia que se sustenta em qualquer idioma.
OSCAR HAHN
Mario Meléndez representa em sua poesia um ditado vivo do século XXI, um ditado composto de mistério e clareza em proporções exatas. Seu trabalho é uma abordagem precisa da verdade, uma revelação no caminho da beleza.
RAFAEL COURTOISIE
SR. PESSOA
Você está feito de estranhas frutas
que envelhecem a cada tarde
ao retornar à casa
São frutas inúteis como essas cartas
que você leva na memória
Assim é a vida, senhor Pessoa
a mão que balança o berço
foi cortada por um trem de carga
onde iam seus heterônimos
crucificados
Você deverá escrever seus obituários
Porém quem escreverá o seu
agora que Deus apenas pinta grafites
nas tumbas das crianças mortas?
O CADÁVER DE NINGUÉM
Você verá o cadáver de ninguém passar
por uma sinagoga em chamas
Permanecerá parado na esquina
onde o cortejo se divide em dois
Alguns irão a pé
levando o ataúde por um atalho
Outros em linha reta
Escoltando a carroça de joelhos
Ao chegar no cemitério
a mãe e a viúva do cadáver
tratarão de tirar o luto
e as pernas ortopédicas
Você só poderá entrar no local
se for familiar
Do contrário
deverá contemplar resignado
igual a esses curiosos
postados nos telhados
ou pendurados nas bananas orientais
Após a cerimônia de cremação
as cinzas serão lançadas
sobre o público
e você retornará à mesma esquina
à espera do próximo funeral
[EU VI KAFKA NO QUARTO DE BRINQUEDOS]
Eu vi Kafka no quarto de brinquedos
Conduzia um trem infinito
sobre trilhos que pareciam enguias
Debaixo da cama outra criança desarmava
uma lagarta fluorescente
A lagarta tinha o rosto de Kafka
também os móveis, os relógios
as paredes tinham seu rosto
as aranhas aborrecidas em suas teias
os brinquedos no quarto
O único que não tinha o rosto de Kafka
era o próprio Kafka cujo rosto
parecia uma página em branco
JARDIM DE ESCOMBROS
Ninguém nos ensina a morrer
Um dia nos apagam a luz e acordamos sozinhos
em um jardim de escombros
entre vermes que nos olham com desprezo
e aranhas que passam o tempo todo de mau humor
Acordamos com medo nas axilas
ouvindo pássaros que desafinam na chuva
e formigas agarradas aos nossos pés
por não terem para onde ir
Acordamos para voltar a morrer
escondendo-nos do vento que regressa
com os joelhos quebrados
esquecendo os nossos gestos
diante de um espelho sonâmbulo
pendendo de nossa sombra
para não cair em um poço cego
onde o cadáver de Deus flutua
Saberão nossos brinquedos
Que a infância não tem pátria
e a memória é outro espectro
em um deserto sem sol?