3 Poemas de Cristián Marcelo Sánchez (Costa Rica, 1970)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins ]

Cristián Marcelo Sánchez é um caso de ascensão, conquistado pelo constante interesse em desvendar a poesia para ter voz própria. Um bom presságio: dedicação, estudo, desafio. Isso deve ser feito. Nem sempre você pode rebitar no mesmo, se for feito com o mesmo. O ofício deve ser exercido, o ofício de um poeta.

Em Cristián Marcelo você sente o jeito de cavalgar as influências: elas estão lá, mas não são vistas. A geração de 27 continua a manobrá-lo, mas sutilmente. Você pode adivinhar Cernuda, Salinas, o eco de Hernández. Juan Ramón cuida disso. Enriquecido –pão de fermento– com algo mais recente, ainda hoje: o surrealismo: contrastar o real com o impossível. Não propriamente o mundo simbólico dos sonhos (De Chirico, Dalí, Miró), mas quase uma continuação – digamos consequência – do que Tristán Tzara e André Bretón conquistaram: definição. Segundo este: automatismo psicologicamente puro, através do qual se pretende exprimir, verbalmente, por escrito, o verdadeiro processo do pensamento, sem envolver o domínio da razão e sem levar em conta qualquer tipo de consideração estética ou moral.

É fato que a literatura posterior carrega – talvez consciente ou inconscientemente – uma influência desse surrealismo, vivido e cultivado por Apollinaire, Aragón, Cocteau, e posteriormente por Eluard, Saint-John Perse, Dylan Thomas, García Lorca, Kafka, Rimbaud, William Blake, Vallejo, Lezama Lima.

Definimos: em Cristián Marcelo não há influência paralisante. Pega o que tem que ser levado e, com isso, cria seu próprio produto: uma poesia nova, sem traços de encadernação, mas encadeada, cheia de novidades tremendamente antigas.

Saudamos o aparecimento de Entre dos oscuridades. Elas nos iluminam para seguir a trajetória de um poeta valioso, que está sendo feito.

FRANCISCO ZÚÑIGA DÍAZ


A linguagem serve de limite para o mundo; qualquer tentativa de transferi-lo –por meio da estética– torna-se imprudente. O grau zero não aceita fronteiras: diz o indizível. O poeta Cristian Marcelo consegue isso por meio da imagem e do motivo surrealistas. Essa lógica permite-lhe tecer um imaginário denso em todas as páginas da coleção de poemas, distanciando-o da habitual compilação de poemas com temas individuais (ou seja, trata-se de uma obra total). Essa densidade em nada afeta a beleza de seu som, pelo contrário, quando lemos Grau Zero descobrimos que a linguagem desfaz as sílabas harmonicamente e o fonema transmuta o som para viajar por todos os cantos do possível. Isso se deve a uma aguda compreensão da tradição lírica espanhola pelo autor e sua devida exegese; uma vindicação necessária.

Tendo dito tudo o que foi dito acima, deve ser esclarecido que este livro não é inocente. Na verdade, o que pulsa em suas folhas é uma violência sutil e sinuosa; um desejo reconfortante – inédito na obra de Cristian Marcelo – que entrou em combate com a língua. Isso revela um poeta com voz dissidente em meio ao coro homogêneo da poesia costarriquenha: vozes que seguem cegamente duas variantes da mesma canção. Não, aqui a inteligência vence e se torna uma bala que tenta ultrapassar a barreira da semântica e há também o impulso silencioso do escritor em uma luta aérea com a estrutura e o signo da realidade.

DIEGO QUINTERO


PROIBIDO PISAR NO CÉU

Veste azul, azul virgem, azul proscrito, um azul tão profundo, repleto de seus pés, de suas coxas, de seus peitos, de seu pescoço, que desejo um banquete de azul, e se for possível lamber azulmente seu corpo gelado, frio, abaixo de zero. Dá gosto um azul assim, tanto que o animal, a besta em flor, deseja desflorar tão maravilhoso azul, tão perfeito azul, tão terno. Ai, que maravilhoso seria beber de seu púbis exuberante, de um azul úmido e rosáceo! Se fosse possível a cada tarde eu me afundaria nesse azul profundamente doce, azul que mal deixa ver o branco seda, o rosa dos mamilos. Um azul proscrito, sem dúvida, porém tão desejável como uma fogueira, uma forca ou a própria morte.


[QUANDO ESCREVO]

Quando escrevo, regressam a mim poemas que esqueci,
as palavras se reúnem e fazem rondas,
vão formando um anel de ecos e notas musicais.
Tudo é literatura,
o resto, uma aranha que tece os sonhos,
o resto, baleia branca,
o resto, o fio de ouro que ri e soluça.
Penso nisto, quando escrevo, não no amor,
mas sim nesse duvidoso animal,
não no esquecimento,
mas nessa certeza que morde as palavras.
Quando escrevo, a mim retorna esse primeiro poema,
essa primeira palavra que não é canto,
mas sim sussurro,
piscada de colibri.
Todos os poemas – que escrevi – se congregam,
formam solstícios,
trópicos,
latitudes e longitudes
de um mundo que não existe,
que, se existisse,
seria como a Via Láctea.
Quando escrevo, retornam os poemas que li,
que escrevi em solidão,
como se a solidão fosse um único poema.


POETAS ÓRFÃOS

Ó inteligência, deserto de espelhos!
Fria emanação de rosas pétreas
no ápice de um tempo paralítico…

JOSÉ GOROSTIZA

Nossa orfandade é certa,
a vemos arder em vestuários e escritórios.
Eu sei que é nossa,
tu sabes que é nossa,
nós sabemos que ela se veste de nada,
que se arrasta por bares e escolas,
portos e universidades,
que seu cadáver fede a vogais e consoantes,
e bibliotecas e gráficas.
Nossa orfandade vai ao teatro,
aos festivais de poesia,
aos lugares abandonados pela mão
de Deus ou seu contrário,
aos cárceres onde boceja o dente de leão,
aos parques onde os transeuntes
escapam das palavras,
da vozes bêbadas que giram em uma dança
de girassóis e giraloucos.

Ao abrir nossos livros e antologias,
nossa orfandade revela sua nudez,
salta pelos olhos
como um fantasma que se evapora,
sabe que o espetáculo deve continuar
com as cadeiras vazias e o público morto.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!