Eunide Odio (Costa Rica, 1922-1974)

| | ,

Curadoria e tradução de Floriano Martins

Para que quero ser rica se posso ser poeta? Deus sabe que preferiria pedir esmola, se fosse preciso, antes que me fosse negado o grande “dom carismático”. Se me fosse dado escolher, entre formar parte dos poderosos da terra e ser parte dos que podem dar vida nova à palavra, em nenhum momento vacilaria. E se me dissessem que me dão um grande poema em troca da miséria extrema, e que só um poema grande, escolho o poema grande, mesmo que seja somente Um. Assim foi desde que descobri que a poesia não era em mim uma “afeição”, mas sim “um destino implacável”.
[…]
Pelo que me toca, enquanto tenho tempo, lápis e papel, sei muito bem como fazer para dizer coisas de tal modo, que qualquer pessoa, com um mínimo de sensibilidade, ou um máximo de hipersensibilidade, tem por força que ficar retida dentro do círculo mágico. É uma espécie de “assalto a mão armada, com traição e vantagem, ainda que não premeditado”.
[…]
A solidão não deve durar tanto, e o poeta deve misturar-se à humanidade. Observá-la, adivinhá-la, padecê-la, alegrar-se com ela, confiscá-la, mordê-la. Me disponho a isto e o conseguirei com a ajuda de Deus.
[…]
Devo esclarecer que não aderi ao suprarrealismo, como disse uma crítica venezuelana. Minha poesia e meus contos são, por exemplo, o contrário da escritura automática. Um e outros estão pensados a cada centavo e superestruturados a tal ponto, que é uma das características que os distingue da literatura que hoje se escreve, em espanhol ou em qualquer outra língua.

EUNICE ODIO
Trechos de cartas dirigidas a Juan Liscano, s/d, citadas por Stefan Baciu em Costa Rica en seis espejos. San José. 1976.


PARA NATÁLIA, A MENINA DO PINTOR GRANELL

Agora estou nesta cidade
perigosamente armada de risco
e plenos de acidentes a voz,
o traje escuro,
o pulso de amor.

Um desses dias em que andava calada
e percorrendo para sempre meu dorso,
de repente escorreguei sem parar,
minha queda atravessada por um astro.

Por tudo isto:

perigo,

graça,

risco,

me é grato recordar sua casa instalada no mundo
para que sua mulher decifre suas tranças
que sobem como árvores;

para que sua mulher agrupe o mel
e a farinha espremida
em altos signos cotidianos.
Sua casa instalada no mundo
onde violentamente armando-se de lâmpadas,
coração no cinto,
pincéis na alma,
secreta a memória,
se organiza a sua saída do sonho.

Além de tudo isto
recordo a jovem dos peixes impalpáveis
a quem com outra voz, com outra cifra,
espera o mar sentado em seu banco de areia
ou disfarçado de peixe na azeitona;

e sua nudez de um cavalo atormentado
cujo balido de varão prematuro
reinicia o céu muito além do ar.

Também,

e pouco a pouco,

como quando na infância
eu sonhava que um sonho me doía
recordo o jovem que eu amava>

uma tarde íamos por meu corpo
com alegria de harpas colhidas,

cortadas pela manhã,
e úmidas.

Entretanto, a trinta mil quilômetros de minha alma
e enquanto eu recordo,

Amparo, sua mulher, vestida à moda das papoulas,
canta uma canção.

Depois diz (o silêncio lhe bica as veias
como um pássaro):

– Que bela está a menina!
Tem já a pele azul das jardinagens!

Eu me olho por dentro,

lentamente preparo
um ato de veludo…

…De súbito,
na janela,
um anjo se despe de rio pequeno,
põe a brisa para secar
e se derrama.

Depois querem que eu não escute,
que não salte a menina

(a menina dá um salto de lâmpada que se abre,
De norte a sul percorrer uma açucena)

que ninguém a veja!
A menina que me aborda ali em meu peito,
Eu a ouço perder seu paladar sem veias.

(Próxima da janela,
com pouco pé de barro distraído
caiu um desejo de voar para a madrepérola

do mar,

todo verde.)

Porém a menina diz bem ali em meu ouvido:

– o mar saiu a passear pelas praias,
o que diriam os velhos crocodilos se o vissem!

(que ninguém o saiba!)

A menina tem um retrato do mar.

(que ninguém o veja!)


DE NOITE, COM A ESTRELA

De noite,
com a estrela,

vemos bem alto o muro

vizinho sobre o mundo,

e até perecem molas
em suas águas gastas,
e até há meninos que purgam
uma pena de cotovia.

De noite, com a estrela,

há corações de homem
que oscilam sobre o muro.


CORAÇÃO COM PARQUE E CRIANÇAS

Anjos de quatro sílabas
levavam teu coração;

no parque o deixaram,
soma de chegada,
tremor,

céu da lagoa,
água que nunca chegou.

Agora, quando as crianças
desenham com giz o mundo,

e sobre todos nós chove
sinos de crepúsculos,

teu coração, à sombra,
consulta os silabários,

pleno de peito e fumaça.


FLORIANO MARTINS | Eunice Odio e as vertentes do fogo em sua poesia

1 | O trânsito essencial de uma poética está situado além de suas estimativas anedóticas, mesmo as declarações de seu autor. Às vezes, a condição provisória pode definir diferentes graus de percepção. Creio que isso tenha acontecido com a leitura crítica da poesia da costarriquenha Eunice Odio (1919-1974), bastante afetada pela dificuldade de seus pares em compreender a verdadeira dimensão de suas opiniões políticas, além das versões sempre restritas e preconceituosas do Surrealismo. O fato de Eunice perceber os destinos políticos da América Central e do Caribe não definia uma condição reacionária de sua pessoa. Assim como suas declarações de que não praticava a escrita automática não a colocam como alguém fora do Surrealismo. Tomemos duas de suas afirmações, como notas do ensaio Surrealismo na pintura do México, publicado na revista Zona Franca (Caracas, fevereiro de 1972), de seu amigo o poeta venezuelano Juan Liscano:

NOTA # 3 | Nada irrita a burguesia com tanta força e descontroladamente – incluindo políticos russos e de outros estados totalitários-comunistas, reacionários em tudo e acima de tudo na arte – do que estar diante de obras que, como os superrealistas, representam situações incomuns. Suas mentes paleolíticas de calcário e gesso se sentem magoadas, diretamente ofendidas, pelo inesperado e maravilhoso que não entendem.

NOTA # 4 | Devo esclarecer que não estou apegado ao superrealismo, como disse um crítico venezuelano. Minha poesia e minhas histórias são, por exemplo, o oposto da escrita automática. Um e outro são pensados ao mínimo e superestruturados a tal ponto que esta é uma das características que os distinguem da literatura que se escreve hoje, em espanhol ou em qualquer outra língua.

Embora a versão inadequada do termo surrealismo permaneça, ela própria observa que o faz como uma correção a outras opções comuns em espanhol: sub-realismo e suprarrealismo, lembrando que o superrealismo compartilha a ideia francesa de além. Enfim, aqui estão dois detalhes que cegaram, para a crítica, o atual espírito de vanguarda da obra e do pensamento de Eunice Odio.
Nascida em San José, Costa Rica, o nomadismo incansável de sua natureza foi a agulha que definiu seu destino. Viveu – ou simplesmente lá passou certos períodos de sua vida – em países como Nicarágua, Estados Unidos, El Salvador, México, Honduras, sempre com uma inquietação invejável, muito movida por dissensões políticas e pelo desejo de mais conhecimento. A paixão pela vida queimou seus dias, com força absoluta e visceral. Ao mesmo tempo essa grandeza de espírito definiu a incompreensão, sua inaceitabilidade entre os seus, uma espécie de isolamento que também teve um componente de sua reminiscência, já que ela se entregou aos estudos de Cabala, passando a fazer parte da Ordem Rosacruz.
Mas sua rede de amigos teve um caráter paradigmático, sempre com nomes de destacada importância em suas áreas, a começar pela juventude de San José, onde publicou seus primeiros poemas na lendária revista Repertorio Americano, dirigida por Joaquín García Monge, até suas afinidades estéticas com Max Jiménez, Yolanda Oreamuno e Emilia Prieto, entre outros. Em suas primeiras viagens pela América Central e Caribe, conheceu Pablo Antonio Cuadra (Nicarágua), Salarrué (El Salvador), Clementina Suárez (Honduras)… O poeta nicaraguense Carlos Martínez Rivas dedicou a ela um intenso e belo poema que leva seu nome por título, onde podemos ler:

Então, para falar sobre o teu cabelo, eu queria
resistir até agora. Para dizer
que está atrás de ti como uma árvore
e, como uma árvore, muita folhagem e sombra espalha.
Para esconder de nós o que nos faria corar e tremer:
e o próprio Deus trabalhando, com as duas
luas de suor em torno das axilas.

A natureza de uma declaração erótica encontrada neste poema tem a ver com sua leitura da inquietação de Eunice Odio, sua excentricidade sempre controversa, sua risada alta e seu senso de liberdade como atributos de uma femme fatale. Eunice Odio era uma mulher bonita e livre. Notemos algumas palavras da sua biógrafa, Tania Pleitez Vela, quando disse que, embora a sua beleza física fosse reverenciada, o seu modo de ser livre e extravagante não se enquadrava nos costumes e convenções da época, pelo que não faltaram julgamentos constantes.

2 | A carta foi um meio de comunicação muito utilizado por Eunice Odio, para troca de ideias e contribuições para o trabalho. Em sua extensa correspondência com o poeta Juan Liscano, diretor da revista venezuelana Zona Franca, que publicou os ensaios e poemas de Eunice, há revelações muito animadas de suas coisas, como suas visões de corpos luminosos, suas relações com o mundo rosa-cruz, a convivência com outros poetas, a sua defesa estética – não é que procuremos deliberadamente as palavras para serem agrupadas numa ordem brilhante, mas sim que assim chegam e nos atacam: agrupadas como querem. E seria preciso ser um santo leigo, para resistir ao encanto a que nos submetem – antes de mais nada, ela o disse em uma delas – e outras questões. Existem duas passagens que tratam de sua visão poética que imagino serem importantes de mencionar:

CARTA DE 1965 | […] A poesia e o poeta são afligidos, também pelo problema da desidentificação. Qualquer um que acredita é, em menor ou maior grau, afetado por ela, seja em algum lugar ou em qualquer lugar. O criador extraordinário, o arquetípico, é o menos identificado de todos – quanto maior a poesia, maior a luz; portanto, maior clarão e cegueira geral. Ninguém acredita que é o que é e, portanto, a identificação é impossível. Eles ficam muito acostumados a vê-lo, porque ele parece o mesmo para todos os homens. […]

CARTA DE 1967 | […] E aí descobri que nunca acreditei realmente que tinha que morrer … Sabe quem tem certeza disso? Octavio Paz. Um dia ele me contou no auge da solenidade e seriedade. Você, minha querida, é da linha de poetas que inventam uma mitologia própria, como Blake, como Saint-John Perse, como Ezra Pound; e que se sentem incomodados, porque ninguém os entende até que passem anos ou mesmo séculos de sua morte. Que conforto! E agora vai haver uma queimação. Como profeta, ele é um chinelo, talvez porque não seja verdade que eu tenha inventado uma mitologia. Todos esses personagens são arquétipos de vida; seres vivos e sofredores, não deuses semelhantes aos homens, mas escolhidos semelhantes aos deuses. […]

Lá encontramos ouro suficiente para ler a poesia de Eunice. Os arquétipos por ela evocados, especialmente em seu livro El transito de fuego (1957), embora baseados em divindades existentes, são uma leitura muito singular de suas relações com o homem, a partir da criação de um neologismo –plurânime – que expressa toda uma concepção filosófica da existência, no sentido de onipresença ou, como ela mesma disse: Se um poeta não é a soma de todas as almas, ele se engana. E precisamente esta soma de todas as experiências reflete o dilema da identificação e situa esta poeta entre os grandes demiurgos do lirismo hispano-americano. Além disso, este é o livro de entrada nos mundos do ocultismo, cabala e teosofia, nas salas iluminadas de uma nova concepção do homem, na dimensão multifacetada da vastidão sacramental de conceitos como verdade, finitude e trindade, por exemplo. Assim vamos aos picos do mistério, à formação de segredos que podem revelar diferentes formas de compreender a vida. Vejamos um fragmento:

Não compreendes então
que sou guiada por signos de indizíveis palavras?
Mesmo que se ergam suspensas as suas artérias,
mesmo que seu sangue ativo tivesse um odor
que chegasse ao coração dos mortos,
e uma vez ali pensassem que era grato,
dulcíssimo odor,
e sorrissem de súbito os mortos,
a vítima não será resgatada.

O extenso e opulento livro, que é uma viagem e tanto, por isso seu amigo, o poeta nicaraguense Pablo Antonio Cuadra, chamou de epopeia desmitologizada, a necessidade de transcender o mito, desde sua epígrafe inicial sugere: É verdade: Mas de que maneira é verdade? Portanto, Eunice não segue os passos da mitologia, mas, em vez disso, inventa seu próprio caminho na espinha elétrica das estações metafísicas. De certa forma, o livro trata da poderosa dimensão de outro poeta hispano-americano com ramificações metafísicas, o chileno Humberto Díaz-Casanueva, que até foi seu amigo muito querido nos poucos anos que viveu em Nova York. O mesmo Humberto que revelou acreditar que a linguagem poética da minha época é uma potência ainda virgem capaz de produzir uma revelação maior do ser humano. Este ato que o poeta entendeu como um processo de lucidez inconsciente, uma penetração nas raízes da linguagem, uma aventura do espírito para alcançar segredos singulares.

3 | Agora mesmo podemos falar sobre os erros e acertos das relações desta poesia com o Surrealismo, já que há tanto uma coisa quanto outra em sua fortuna crítica. O desenho de uma atmosfera que fica um pouco imersa nas águas do onirismo, principalmente no livro Elementos Terrestres (1947) – livro em que a entonação amorosa se escreve com um crepúsculo emaranhado entre a linguagem –, bem como a forma como o fez, buscando no imaginário uma realidade sem limites, são características que aproximam sua visão da criação do Surrealismo, mas sem convertê-la à sua ortodoxia, ou seja, é impossível classificá-la como surrealista na medida em que a multiplicidade de seus códigos estéticos é Inclassificável, mas nunca como uma rejeição do movimento a que ela própria se refere como sendo, em todos os países hispano-americanos […], mais do que um programa, uma necessidade autêntica, um imperativo categórico.
Em seu ensaio sobre a pintura surrealista no México, já citado aqui, ela nos oferece uma leitura fundamental de seu pensamento sobre o surrealismo:

Se o homem comum ama a liberdade acima de tudo e a usa para fazer o que lhe agrada, no fundo, o poeta e o artista são mestres em fazer o mesmo. E para exercer a liberdade de fazer o que quiser, não há nada melhor na arte do que o suprarrealismo. Não atrapalha a imaginação, ou o valor pessoal ou qualquer uma das qualidades espirituais, ou qualquer coisa que consideremos imensamente bela e valiosa.

Ora, o que acontece é que a biografia de Eunice Odio está repleta de atos e opiniões políticas muito provocativas e a ponto de as pessoas a considerarem reacionária. Um desses exemplos está no fato de que ela fez declarações muito duras em relação ao comunismo e foi totalmente contra a revolução cubana. Isto, que a rigor traduzia apenas sua defesa do livre pensamento, nunca foi aceito e seu nome foi apagado de muitos círculos, inclusive na literatura e no jornalismo. Acrescente-se o fato de ela ter sido apontada como autora de uma escrita hermética e incompreensível, fato que me parece muito nublado de preconceitos. O que temos hoje é a necessidade de recuperar a obra de uma das poetas mais importantes do continente, com o seu fogo sacramental, o seu fundo iluminador e a efusão de liberdade que soube fazer brilhar como uma geometria das paisagens interiores. Esta mulher que disse em um poema: Esta manhã acordei feliz, e seu corpo foi encontrado na banheira de sua casa, uma semana após a morte.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!