10 Poemas de Mía Gallegos (Costa Rica, 1953)

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Apresentação e tradução de Floriano Martins

“Mía de ninguém. Mía de mim.
Sem uma biografi”a.
Mía Gallegos

Sabiamente percebeu Jorge Luis Borges que um dos efeitos da poesia deve ser o de nos dar a impressão não de descobrir algo novo, mas sim de recordar algo esquecido. Um modo singular de reconfiguração da memória. Não no sentido linear de uma biografia, porém na criação de infinitos mundos em um só. O poeta seria então uma multiplicidade exaltada de elos que correlacionam suas vidas à de seus desconhecidos leitores, por vezes tão desconhecidos quanto os muitos eus que ele abriga em si. A poesia de Mía Gallegos (Costa Rica, 1953), que fala de incontáveis vozes em seu íntimo – personagens por vezes tão confluentes e distintos –, reflete uma biografia acidentada, a verdadeira história de quem a relata, escrita (recordada) dentro e fora do tempo, alheia hoje ao espeço que ocupou ontem e ocupará amanhã. As inúmeras mulheres que a todo instante transitam em sua poesia – mesclando sonho e vigília – decifram a enigmática paisagem do silêncio que as transfigura a cada palavra tecida, a cada imagem ao mesmo tempo reveladora e imersa em novo mistério. Ela mesma nos confia: Não compreendo qual é o meu papel. O certo é que estou aqui desde sempre, no alto, olhando para frente, sem parar, sem fazer um só momento de trégua. Não posso fazer concessões a ninguém. Estou aqui e isto me basta. Também o leitor dificilmente saberá qual o seu papel. Ambos estão ali, em um irrepetível encontro, sem que um saiba quem é o outro. E, no entanto, seguem, com a ousadia de uma intimidade inigualável.


DEPOIS DO AMOR

Depois do amor,
depois do amor posto sobre o amor,
como altivos vulcões que se queimaram,
como fluxo de lava,
como astros que sucumbiram,
resto em mim,
no centro de minha pele e em meu vestido,
e aprecio a luz
de um amanhecer que rompe calmo,
aberto, perfeito,
como a curva de um anjo quando passa,
quando atravessa.
Eu te esqueci, digo
e minto, minto a mim mesma,
já não creio nas palavras ou nas roupas.

E brota então
uma ácida ternura
que saboreio com a língua cansada,
ferida,
com uma língua que ausculta,
que devora a sós
o esquecimento, a acidez, a lembrança
de uma noite lunar,
de abraça-me muito e não te vás nunca,
de raras geometrias,
onde teu corpo era brioso e longo
como um estreito caminho que não consegui cruzar.

O amor passou, digo a mim mesma
e agora não minto.
Saboreio minha ácida ternura
e descreio das palavras,
e assim permaneço: cética e calada,
para o caso de algum dia os verbos
nascerem em mim como frutas,
para o caso de subitamente nascerem
como astros as palavras,
e a metade de meu rosto se vire em busca de ar,
ou volte o rosto a ser intacto e fale,
e eu fale.
Agora nada mais eu sou
com minha ácida ternura e minha garganta
e todas as minhas lembranças.

Porém o amor se foi.
Foi como a noite se vai.
Eu te recordo.
E isto me parece que para esta vida
já é bastante.


AUTORRETRATO

Eis-me aqui
com a minha elementar pobreza:
duas pernas, dois braços
e um corpo feito de água no espelho.

Se deslizo entre perfis
ninguém pode encontrar a outra face
de meu rosto no espelho.

Porém se mostro o que sou,
os desejos ficam nus e intactos:
os olhos, a fronte alta, o dedo com o qual designo
o que é meu
e o que amo.

E, por último,
escondida está a boca
acompanhada de dobras inapagáveis
que ninguém, nem mesmo tu,
poderás apagar com beijos.


ASTÉRION

Há algo que, muito além
de tua força,
me fascina.

Caminho sobre teus peitos de pedra.
És da cor de polvo e lagartixa.
Envolvo-me em tua língua de mistério.
Tal é a tua forma de estar
próximo do sol.
Estranhas marés matinais te acodem,
onde tudo escurece e se bifurca,
Astérion meu, único.
Quem és?
Touro ou homem?
O ausente derramado
entre infinitos lacres.

Eras o pé, o próprio ar
da primeira manhã
em que os homens lavraram
teu corpo de ausências.
Estou tão longe de tua pele.
Mas que recanto há em ti
onde eu possa dormir
e ser tua pálpebra
e a forma mais funda do silêncio?

És homem ou besta?
És um homem,
um rouxinol,
ou talvez um pirralho
entre lençóis de açúcar.

Astérion meu, único, de mil olhos de agulhas.
Tuas mãos são múltiplos do sol.
Ontem cacei uma borboleta
e era catorze vezes harpa e movimento.
um e um não são dois,
são o universo e o nada.
as portas de todo fim
e do infinito.

Eu me adentro em ti.
Através de teu corpo
ainda permanecem os redutos do sol.
És oculto e quente.
Eu me enredo no corredor
de tua língua de vidro.

Ascendo até as tuas mãos.
És um espelho
de outro que antes foste.
E eu tenho medo de me perder em ti,
no fio
que são todas as portas
e a escuridão.

Astérion meu, tão alto e pagão.
Eu me adentro em teu corpo empedrado, altivo
– não tenho escapatória –
Mal suporto teu clima de asfixia.
Porém és uma almofada dulcíssima,
Astérion meu, Astérion.


PSIQUE

Ela sonha com um homem que a veja dormir.
Não lhe sorri
para não distraí-lo de sua contemplação.

A amada, de tantos sonhos, dorme
e se torna metáfora de pó.
Ele a contempla
e imagina uma palavra para nomeá-la.
A encerra entre sua voz e a guarda para si.

Ariadna? Ele indaga.
Ela treme em suas almofadas.

Psique?
Ela então derrama umas gotas de sua lâmpada de azeite.
Ela o unge sobre sua fronte.
Beija-o e se vai.


RETORNO À NOITE

De imediato retorno
à noite
com meus sapatos de água.
No lento
exercício de minhas mãos
eu me dispo
e busco
apenas
um objeto meu,
um pequeno barco,
um cometa,
um circo de coisas inventadas,
figuras cotidianas,
tuas e minhas,
que amo.
Porém sei
que de imediato
me torno incessível
e volto a ser silêncio
e chama escura,
onde meu barco
escapa de tua margem.


EM MEU QUARTO TEÇO O VENTO

Em meu quarto teço o vento.
Ignoro se são remotas as minhas lágrimas
ou se estão guardadas ao lado de amarelas fotografias,
junto aos dedais e agulhas que soluçaram.
Cogito unindo as pontas da agulha com a lã.
Desatendo a espera.
Teço e esqueço.
De imediato perco o ponto
e uma casa se desfaz sobre a poltrona
e minhas mãos.
Fico toda entrelaçada
em um novelo de amor e luz.
Não sei
se teço à tua espera
ou se traço em círculos
o vento
e minha mortalha.


O CLAUSTRO ELEITO

Não busco nada.
Não aguardo a ninguém neste dia.

Esperar é uma dos raros
estratagemas de Deus
para determo-nos em um ponto.

Meu país:
montanha verde e chuva.
Um cavalo se perde na planície imaginada,
que agora está vedada a meus olhos.

Busco a intensa reflexão:
a dos livros amigos,
a luz interna que preciso para viver,
a candeia de ouro,
o Eclesiastes e a paciência de Jó.

Na minha idade e em um país de chuva,
o claustro é uma eleição.

Aí se perdem os contornos.
A vida se dilui em um ir e vir
do trabalho ao café,
do café à taverna.

Busco a infância que sou:
a planície, a sombra da árvore gigantesca,
o único mar sem fundo,
o cavalo desbocado em sua fúria,
o verdor da montanha junto ao céu.

Gosto de ficar a sós
sentindo como o sangue me nutre de novas roupas.

A sós eu me pertenço.
Não há dicotomia entre o espelho e eu.
Uma vive e a outra sonha.
Juntas recordamos um homem.
Juntas escrevemos estes versos.


SONHO EM VIGÍLIA

Este não é um sonho.
Não é a álgebra sonhada.
Não é a realidade imaginada
ou a greta entrevista.

Tampouco é a literatura que se pareça com o sonho,
ou o sonho que se pareça com a literatura.

Igual que A Intrusa que Borges escreveu
na vigília,
fui sacrificada por dois homens.

Meu sacrifício não os tornou melhor ou pior.
Agora eles, os dois, devem me esquecer.

Meu sacrifício foi pela luz própria.
Sou uma mulher que em vigília escreve
e recorda dois que amou.

O sacrifício foi amá-los,
e não isto que agora relembro,
que se parece com certa altura e o esquecimento.


AMOR NA CLAUSURA

A chuva arrasta as folhas das árvores,
e os corpos que não aceitam se curvar
morrem como heróis de nomes vagos e obscuros.

Tanto tenho chamado Deus
desde meu claustro,
busco sua origem, sua confiança, seus pés, o barro,
porém a vida me segue a golpe de chuva.

Sou pobre, digo a mim mesma,
sou pobre como no Amor
porém não conheço a súplica.
As articulações de minha mão jamais golpearão
porta alguma.

A vida me feriu com suas garras
porém insisto em seguir
como a guerreira que sou,
e que ama a cidade,
sua cidade.

Por isso, e não mais do que por isso,
amo a nostalgia
porque é profunda como as velas azuis
que tecem o encontro entre o dia e a noite.

Amo esta solidão
que transcorre entre livros, sonhos, chamas
onde existe um pacto com a vida
e uma consagração com a espera
de um dia mais nobre e uma solidão mais profunda.

Com as mãos invento figuras e nomes
na parede
e lavro uma cidade
coberta por torres secretas,
que amanhã habitarei
cobertas pelo canto do tempo, do mar,
do sal,
recobertas pela auréola da espera,
por uma longíssima espera, despojada de esperança,
porém quente e pequena como um ninho profundo,
como o ouvido de Deus que me guarda e me nomeia,
onde serei a dona
de uma canção soberana e solitária
como a negra harmonia do mar,
da noite e do tempo
que se devolve e retorna
como uma meada profundamente quente
unificadora dos corpos
que traz a maré,
que depositou o mar sobre o sal branquíssimo
que se encontram na crista
e diante do sol,
e baila a dança do marulho,
do desconcerto, do desconsolo
da pobre, distante e doce solidão.


REINO

A mim me ensinaram
a arte do silêncio.

Também me foi indicado
com gestos
que era mister responder
com nobreza frente à adversidade.
Cumpro com a promessa de calar.

A mim me falaram da tolerância,
desse duro exercício de
suporte,
sustente a cabeça,
mantenha o pescoço inalterado e se cale.
Cale-se.

Fartamente aprendi
e me tornei frugal,
porém do amor
sei pouco, bem pouco.

Conheço o alfabeto dos gestos,
o das mãos,
porém guardo silêncio.

Já sei que manda quem conquista,
e eu sou uma mulher e não uma guerreira.
Calo. Me calo. Resisto.

Amei e perdi meu reino.
Bendita tempestade!
O silêncio. Este é meu reino.
E nada mais.

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