3 Poemas de Jacobo Rauskin (Paraguay, 1941)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Os clichês me encantam, não fujo de nenhum, procuro me aproximar deles para livrar-me do falso refinamento aristocrático de quem não é aristocrata da palavra ou da música ou de nada. O lugar comum é um grande canteiro da linguagem. Você conhece expressão mais banal e peculiar do que essas duas palavrinhas: te amo? Bem, é absolutamente insubstituível. Vamos imaginar uma modulação, digamos, por exemplo: A vida sem você não vale nada. E teremos outro lugar comum. Os temas, os lugares comuns, os clichês abundam no cinema, na pintura, na música. Quando bem utilizados, não incomodam ninguém. Penso no grande cinema de ontem, em alguns filmes de Marcel Carné cujos roteiros foram escritos por Jacques Prevért. Neles, há cenas em que certos clichês verbais de puro realismo adquirem o caráter de expressões simbólicas próprias de uma poesia dramática não versificada. Penso em Le jour se lève e na frase Alguém caiu, que grita um cego quando, ao subir a escada, toca com a bengala um homem assassinado.

[…]
A transparência, que geralmente é uma questão de grau quando realmente existe, varia do translúcido ao diáfano, do claro-escuro às cores mais vivas. No poema, ela está absolutamente em tudo, não apenas na sintaxe. Além disso, os vínculos do simples com o transparente podem ser enganosos. Lembre-se de Pound quando ele pretendia, em suas palavras, uma poesia clara e difícil. Quando falamos de clareza no mundo das palavras, falamos de um ar ou de uma água que nos permite ver pássaros ou peixes, por exemplo, mas não estamos falando de pássaros ou peixes. Quero dizer que a linguagem fica entre a palavra e o que é nomeado por ela. Uma das razões pelas quais não acredito em traduções de poesia como qualquer coisa que não seja a execução de exercícios nobres e úteis é que a história da poesia é a história da linguagem em que ela aparece, e a história da Poesia apenas arquiva palavras parcialmente, o que ela realmente faz é procurar um ar ou águas transparentes que permitam que as palavras sejam vistas perto das coisas que elas nomeiam ou às quais aludem. Os textos vão se juntando, criando o que for preciso para que sejam modificados, alterados pelo contato de uns com outros; enfim, já com certa transparência, aparecem reunidos no livro.

JACOBO HAUSKIN,Fragmentos de uma entrevista concedida a Augusto Munaro, por ocasião do lançamento do livro Esa manza tristeza (2020).


CLANDESTINO

É verdade, o ontem vive em mim.
Sou um cronista de outro tempo.
Neste mesmo instante, sem ir mais longe,
sou um eco do trem internacional,
dos viajantes que então viajavam
nos vagões de terceira rumo ao desterro
e, mais amavelmente,
à terra do doce de marmelo.
Recordo a estação, o trem, a plataforma,
toda aquela gente, todo aquele frio.
Recordo o relógio, o badalo,
as passagens em cor lilás
e o ano impresso no calendário.
Sobretudo, recordo um lampejo.
Um lampejo cruzando a noite
era aquele homem a ponto de subir no trem.
Um da classe perdedora, um clandestino.
Ali o encontram, o capturam.
Foi um incrível descuido, disseram
aqueles que sabiam algo do episódio.
Durante anos, para não comprometer a família,
a ele se referiam em sussurro.
Hoje sequer o mencionam.
Eu o recordo dessa maneira.
Ergueu seu braço por um sonho
e não foi astuto nem o acompanhou a boa sorte,
companheira de tantos.
Derrotaram-no, perseguiram-no
mesmo depois de sua derrota.
Da estação o levaram a uma vala.
Ali o mataram, segundo alguns.
Segundo outros, chegou morto.
Como não creio nas testemunhas,
digo que viaja nesta lembrança.
O trem segue sua marcha sob as estrelas.


O APRENDIZ

Um ano é hoje o porto que o navio toca.
O porto é uma chuva com mastros.
É melhor não falarmos sobre o navio,
falemos dessa chuva de ontem
que ainda cai na janela.
O aprendiz ouve a chuva
olha para ela como ela quer ser vista.
Assim como as árvores são chuva com folhas,
o aprendiz se sente chuva com sapatos:
vai pisando em uma mistura de lama e sonho,
uma promessa de paraíso.
Entre armas e desfiles e lápis e borracha
para apagar rascunhos de um poema,
nenhuma vocação para armas
onde um jovem, se é pobre e não soldado,
é pouco menos que um fantasma,
o aprendiz aprende a ler, realmente,
a ler uma carta escrita pela chuva.
A chuva passou, a carta permanece.
O silêncio se foi, as folhas caem
do calendário em um filme.
Cena inevitável, a do calendário.
As folhas caem, mostram os números,
os nomes dos dias e meses.
É assim que o espectador descobre.
O viajante tem certeza de algo,
ele não é um espectador de si mesmo.
Sempre que possível retorna
à cidade da janela na chuva de ontem,
a um país de amor e seu povo,
pessoas tristes, sem sorte no jogo.
Retorna e com ele retornamos nós
a uma jovem com uma cabeça bonita,
um olhar vago e um coração sem cabeça.
Ele a deseja, ela dança no teatro.
Há um café perto do teatro.
Lá, os justos em uma mesa, o injusto em outra.
O jovem não saúda o injusto.
Tudo se explica,
diz a seus companheiros, menos a injustiça.
Os anos são para seu ofício inexistente
o que são os séculos para uma formiga.
Hoje ele afirma ser o velho aprendiz de um poeta.
E uma vez que viver é mistério suficiente,
ele não quer a certeza para si mesmo
do fogo que já foi.
Por isso anda,
a roubar outro fogo para depois assiná-lo.


A GARÇONETE ESTÁ CANSADA

Este filme não veio
de nenhum festival.
Foi filmado com atores inexperientes,
com equipamento barato, na rua,
em uma pousada, em uma noite.
A garçonete está cansada.
Tem gente que cochila
com os cotovelos na mesa.
A luz que aquece uma janela
bem pode despertar certa emoção
em quem olha da rua.
O cansaço aninha-se no olhar
da bela garçonete.
E as estrelas, acima de tudo,
aquelas de primeira grandeza,
nenhuma outra mensagem têm
do que a que vão deixando
com música e vento nas árvores.
O filme ainda está avançando.
O inverno toma conta da rua
e algo procura por um cachorro no lixo:
as luzes da rua o ofuscam.
Uma ambulância passa, com tanta relutância
que não se sabe se vai, se volta ou passeia.

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