3 Poemas de Camila Recalde (Paraguay, 1992)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

O poeta é aquele que vê poesia em sua vida diária, na rua, no banheiro; um poeta é aquele que é afetado em sua sensibilidade pelo cotidiano de uma forma cotidiana. Eu sou outro ser confuso que busca canalizar essa confusão com a criação, sinto atração pelas artes em geral; a literatura talvez seja a arte que mais exige de mim e, contrariamente, tem me dado menos, porém grandes satisfações, várias vezes tentei me afastar dela e cada vez me aproximo mais, a literatura, para mim, é uma armadilha.

[…]
Não tenho caminhado tanto neste mundo – pelo menos não com este corpo e este nome –, o suficiente para fazer analogias com outras dinâmicas. Já sou filha da era digital, porém, renego um pouco a tecnologia, evito-a ao máximo, não tenho televisão em casa, acabo de entrar no mundo dos smartphones e não tenho ideia de como o spotify funciona, nem mesmo sei como se escreve whasap. O trabalho literário dispensa totalmente o digital, porém a tecnologia é uma ferramenta muito útil, tento usá-la sem deixar que ela me use.

[…]
Eu soube pela primeira vez o que era magia através da literatura, como outros podem saber através da música, observando uma planta, concebendo um filho ou após um suspiro. Posso citar vários escritores que formaram minhas primeiras leituras e me surpreenderam, mas para responder à pergunta, acho que se há algo que me levou a inclinar-me para a escrita, trata-se de uma herança familiar que se manifestou inconscientemente. Na minha família havia vários escritores, alguns mais reconhecidos do que outros, mas todos poetas, enfim; conheci alguns deles através de seus escritos e senti que poderia realmente conversar com eles ao lê-los, isso é algo que me fascina nos livros, eles guardam uma conversa sem fim fora do tempo e do espaço.

CAMILA RECALDE
Fragmento de uma entrevista concedida à página web Gloriosas, Assunção, 2021


DIZ

Que os ouvidos estão zumbindo,
os tímpanos tocando.
Talvez sejam seus diabinhos sussurrando luxúria
capaz que sejam seus anjos cantando boas vibrações
é possível que sejam esses bichinhos do ouvido
acordando
livrando-se do caíque
rasgando o interior de seu ser frágil
é o que costuma acontecer com os seres que vivem dentro dos outros, sua vitalidade é proporcional ao infortúnio do hospedeiro e a pessoa os vê e não sabe alegrar-se por um ou pelos outros.
Nós, os espectadores, cegos por esse afã de objetividade, quase sempre sentimos pena dos dois, dele, deles, de todos. Continuamos a escolher sentir pena para que possamos, paradoxalmente, nos sentir melhor,
mais humanos,
mais sensíveis,
com mais anjos nas orelhas.


MEUS BENS

Fecharam o parque,
pavimentaram o gramado.
Eu não tenho mais
do que aquilo que guardam
meus bolsos rasgados;
um par de abacates,
alguns limões,
um gato sem dono,
demasiados beijos…
E tu,
que vais com os ombros carregados
de acordes maiores,
de peixes sem nome
e ao final do dia
só tens as mãos
tuas mãos e suas muitas bolhas
e um inverno ameno
que não satisfaz
teu desejo de frio.
E nós,
que mesmo somando
nossos escassos bens
não somos nada além de pó,
dúvidas,
caixa de correio sem casa
parque fechado,
cabelo sem tranças,
poemas soltos,
techaga’u,
não sei.


ÀS VEZES EU, SEMPRE TU

Às vezes,
quando percebo o absurdo da realidade
quase escuto meu ronco
respirar, despertar, respirar…
geralmente não funciona
de quanto mais necessitas para deixar de necessitar?
fique um pouco mais,
vamos cozinhar algo
eu,
que durmo com os pés descobertos
que sempre senti tua falta
que me pergunto respostas
e me respondo perguntas
que logo fiquei sem nada mais para dar
e se dormirmos juntos?
fique para dormir,
vamos dormir juntos
para sempre
que me entreguei à zoofilia
eu a chamei de outra coisa e descartei a moral
as categorias, os obstáculos,
procurei coisas que não entendia muito bem.
tu,
que tens tanto medo, tanto medo
que compreendes o medo e nada mais
que não gostas de tranças
que te aproximas da luz
apenas para agigantar a tua sombra e te sentir bem grande, maior
E se falarmos de outra coisa?
Está fazendo frio
melhor que ponhas um gorro.

1 comentário em “3 Poemas de Camila Recalde (Paraguay, 1992)”

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