3 Poemas de Farah Hallal (República Dominicana, 1975)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Os países latino-americanos são parentes de sangue por um tema de opressão histórica: a hegemonia das grandes potências que sempre perseguem suas riquezas. E a poesia é um vínculo que nos une por uma razão cultural, ou como eu o chamo, puramente sentimental: há um sentimento de pertencimento compartilhado que se faz sentir na poesia, aquele que mais chama a atenção – pelo seu caráter social (e não a bobagem de um feminismo caricaturado) – é o apelo latente da poesia feminina que continua a abordar uma questão vital: a opressão das mulheres pelo mero fato de ser mulher. É uma questão de impacto social para a maioria, que é composta por mulheres na AL, e não para uma minoria marginalizada. Não estou dizendo que seja um assunto exclusivo, pelo contrário, a dimensão que aborda a poesia feminina na América Latina é ampla e suas raízes são profundas, digo que, do ponto de vista social, a opressão à mulher emerge na poesia.

Por outro lado, as redes sociais favorecem um grande fluxo entre todos os continentes, mas essa quantidade de informação não filtrada não ajuda a distinguir o arroz da palha. “Todo mundo” escreve (e é bom porque escrever “não é um luxo”, eu compartilho, é uma necessidade), mas nem todo mundo escreve algo memorável por sua qualidade literária.

[…]
Entender a violência como um fenômeno decorrente da crise é perigoso. A violência, como o famoso miniconto de Augusto Monterroso, é talvez como o seu dinossauro: que quando acordou já estava lá. Me surpreende que a coisa seja o contrário… que a violência de colarinho branco com a qual a corrupção da casta dominante ataca o povo é o que então desencadeia a violência no varejo nas ruas. Mas aquele sangue respingado nos cantos é surpreendente porque mancha, e fica bem nos tabloides, então você vê os cavalheiros fumando charutos e bebendo bebidas caras. O que não mancha é a violência da alta sociedade porque ela é bonita e se veste bem, e então você não imagina que aquele sorriso lindo de revista tenha sua origem num pedaço de papel panamenho.

Uma coisa é passar por uma crise, em que você pode desenvolver sua criatividade e habilidade para resolver problemas ou ter um estilo de vida mais carinhoso e humilde. A crise é subjetiva porque todos a estão experimentando de maneiras diferentes. Agora, a marginalização nos cerca. Você herda a pobreza e não tem como se livrar dela para o bem, porque você pode oscilar entre o feroz por excelência ou o socialmente ressentido. Quando toda a sua comunidade é marginalizada, os valores começam a parecer relativos a você. Você pode ter muito dinheiro por herança e ser marginalizado por ter recebido uma educação da qual se tornou um parasita. O dinheiro não o torna uma pessoa melhor, assim como a pobreza não o torna um criminoso em potencial. A questão é complexa, mas a ideia é essa.

FARAH HALLAL
Fragmento de entrevista concedida a Eduardo Nabal, 2017


QUARTO ESCURO

A luz cega mais do que a sombra
seu mistério reduz a condição humana.
Não o vemos. Como não vemos o olho lançando seu vazio
porém ele o leva cuidadosamente a seu cansaço
e descerra a cortina para economizar luz
e já confiante no silêncio de sua sombra
como uma imagem carente de seu processo,
como uma amante de seu quarto escuro,
rouba a umidade do barro
abandona-se a um desejo líquido
corre sem dizer a ninguém o que roubou do orvalho.


CANIBAL

El cuerpo es agua derramada en la mesa, un temblor constante en estado de sitio, migajas de pan sin levadura, voz redondeada, mordisco tras otro que rehuye.

Apenas son las diez y me he comido el vientre. Voy bajando la voz como la luz de una lámpara. Sin saborear trago la carne, lamo los huesos, quiebro la taza delirante donde serviremos el cristal triturado de la copa de un árbol.

El cuerpo es la lengua rememorando su cauce, hijo pródigo que transita por la codicia de la sábana.

Mal haviam dado as dez horas e eu comi um olho e o pássaro urbano que estranhava a montanha. Sedenta, a minha língua se estende no prato, mas continua presa ao amanhã. Evita navegar pelos canais ocultos da terra, pela bandeira pregada na periferia do nome. Dela se diz: está morrendo em seu lugar de origem. Que outra inquietação canta ao pé da boca. Que outra alegria rola em sua vigília macabra.

O corpo é água derramada sobre a mesa, um tremor constante em estado de sítio, migalhas de pão ázimo, voz arredondada, uma mordida após mordida que evita.

Mal haviam dado as dez horas e eu comi o meu ventre. Continuo baixando a voz como a luz de uma lâmpada. Sem saborear, engulo a carne, lambo os ossos, quebro a xícara delirante onde serviremos o copo amassado da copa de uma árvore.

O corpo é a língua recordando seu canal, filho pródigo que caminha pela ganância do lençol.


ENQUANTO O FOGO DESCOBRE COMO CAMINHAR EM TEU DORSO
(Escrito a quatro mãos com Floriano Martins)

A noite muda de lugar em tuas mãos.
Por vezes busco teu nome em minha pele.
Teu olhar travesso soletra outros sabores.
Uma quentura de ervas, uma possessão
de mitos nos manjares de tua cozinha.
O fogo se aproxima de meu armazém de pólvora.
Com um latejo veloz e uma respiração
cortada com as facas que guardo debaixo
dessa almofada úmida arqueada na palavra.
Como se o tempo fosse mais do que fumaça,
eu me aproximo da cidade sitiada de tuas coxas.
Muito além de tua lenda, eu te quero, muito além
do destino que os deuses confiam a teus pés.
Eu te quero muito além da notícia do jornal,
da mútua condição de humildes mortais.
Mesmo sem tempo para nos amarmos demasiado,
dúvida e certeza expiram em nosso calendário.
E eu te quero muito além do instante náufrago
onde algum dia vimos rendido nosso desejo.

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