5 Poemas de Roberto Juarroz (Argentina, 1925-1995)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Não somente a Europa, como também os Estados Unidos, sentem interesse pela América Latina. Há anos nos chamava a atenção le sauvage. Aos europeus atraía o irregular, a aventura. Isto foi sutilizado através de um interesse pelo pensamento latino-americano, certamente que posterior à sua política. Agora isto coincidiu com um rebento importante de nossa literatura. O boom surpreendeu a Europa e um pouco a Espanha. Esse fenômeno não cedeu, mas sim foi substituído e agora, pouco a pouco, vai passando para um lugar mais original: uma parte da poesia latino-americana. Alguém me disse que é muito difícil reunir uma série de poetas como é possível fazer na América Latina e outra semelhante em outra parte do mundo. A linguagem da escritura latino-americana ocupa um lugar muito importante na literatura de hoje. Alcançou cidadania universal.

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Há anos o poeta inglês Shelley escreveu, em Defesa da poesia, que os poetas são legisladores não reconhecidos da humanidade. Quem é mais legislador, o eleito pelo voto mecânico e obtuso de maiorias induzidas por propagandas de campanha ou Shakespeare, Cervantes, José Hernández? Quem alimentou mais a fome, a necessidade das pessoas, a possibilidade de superar a angústia do homem frente às limitações de seu vizinho? Por outro lado, acrescento, pela abertura da escala do real, que a poesia é o maior realismo possível, porque é canalização do mais positivo, vivo, intenso, do homem: sua possibilidade de criar. Se não encontramos os caminhos para superar o agrilhoamento da política – dimensão administrativa e secundária da vida –, para despertar a criatividade, não há solução possível para estes países. A primeira coisa é o que estamos fazendo: seguir criando, falando, escrevendo, não sentir temor em dizer isto através de qualquer meio, para que consigamos despertar alguns. E confiar em que tudo isto, que não atuará jamais como revolução política, atuará como revolução subterrânea.

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No coração do romantismo alemão, disse Novalis: a poesia é a religião original da humanidade, a única forma de religião que nos resta. Subscreveria hoje uma frase que disse Kierkegaard há muitos anos: a cristandade não fez mais que trair o cristianismo. Creio, com matizes de diferença, que isto é aplicável às demais religiões. O homem não pode ser tal sem o sentimento do mistério, que é a condição humana. Ontem, em entrevista para um jornal de Paris, recordei o pensamento de um cientista, Einstein. O sentimento do mistério é o mais importante, disse, que o homem possui, e a origem de toda a poesia, filosofia, ciência, religião. E acrescenta: perdê-lo é como estar morto. Creio que o que mais importa é estar vivo.

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A palavra é o que há de mais próprio do homem. Disse alguém certa vez, um pouco ironicamente, que aquela velha expressão “Deus não fala” era absurda, porque a palavra não é questão de Deus; mesmo que Deus não exista. Que faz o homem? Bom, eu diria que se alimenta de universo. Não pode existir sem ser, de alguma maneira, o transubstanciador, como você próprio disse no seminário, do universo. O homem é ser que converte o universo em outra coisa. Se se quer, através da palavra, converte o universo em si em sua própria transpiração. Em último termo, é como se a mudez do cosmos se salvasse, se redimisse, possivelmente se metamorfoseasse neste milagre que é a palavra do homem.

Roberto Juarroz / “Diálogo con Roberto Juarroz”, entrevista concedida a Antonio Domínguez Rey. Paris, 1985.

A poesia de Juarroz, com efeito, começa pelo ver, não pelo visto. Isto é, começa pelo ato. Já no poema inicial de seu primeiro livro, diz: “Uma rede de olhar / mantém unido o mundo, / não o deixa cair”. De igual maneira, seu espaço não o aberto do mundo, mas sim um espaço fechado. Há uma forma, diz: “que nasce da mão fechada, / da mais íntima concentração da mão”. Não está propondo nada crítico, nem solipsismo algum. Se esse espaço fechado alude a uma ordem interior, esta, a seu modo, é outra forma de intempérie: o debate ontológico por conquistar não somente seu verdadeiro ser, mas sim igualmente o do mundo. “Estou chamando em uma porta aberta. / Estou chamando de dentro de mim mesmo”, chega então a precisar. Por isto é que a sua é uma “paixão vacante”. A paixão do olhar por ser o que vê, o que vislumbra.

[…]

Esta poesia, dizíamos, encarna (não simplesmente ilustra) um debate ontológico. É talvez o que Juarroz quer sugerir com o título de poesia vertical. Com efeito, a visão que ela desdobra não é expansiva nem horizontal (puramente histórica); é uma visão em profundidade: confrontação direta, sem mediação, com o essencial, com o que de alguma maneira tem sido não-essencial na história, sobretudo em nossa história contemporânea. Essa visão explora o mais cotidiano do homem: as coisas que o rodeiam e sua própria existência, ou seja, as simples experiências da vida: o amor, o esquecimento, a solidão, a memória, o sofrimento, a morte. Porém o cotidiano, sem deixar de sê-lo, é igualmente original, primordial. É, além do mais, sagrado.

Guillermo Sucre / “Juarroz: sino/si no”, ensaio incluído em La máscara, la transparencia. FCE. México. 1985.


SEGUNDA POESIA VERTICAL, 3

Há pensamentos que deveriam culminar
em um gesto de sua própria substância,
conciliações, mortes e até esquecimentos
que artificialmente devem ser detidos
em uma paralisada iminência,
em um embrião ou anteprojeto de gesto
imobilizado de súbito como um rígido boneco
no interior de uma parede de vidro.
E não se sabe se ali termina o homem,
nesse falso vazio transparente,
ou se o gesto necessário não se cumpre
porque em frente já não há ninguém.
O certo é que o mundo
não é mais que um montão de extremos incompletos,
de pontas frustradas
no escandaloso e simulado espaço
dos gestos que não existem.
E a morte não é outra coisa que a plenitude desse espaço,
a fusão desses gestos.


SEXTA POESIA VERTICAL, 27

Há dias em que o ar não existe.
Mineiros da desolação,
respiramos então substâncias escondidas.
E a ponto de nos asfixiarmos,
vagamos com a boca aberta
e não acendemos nenhum fogo,
para não consumir o pouco oxigênio que nos resta
como um pedaço de pão do dia anterior.

Já não recordamos o nome de nossa rua,
nem a medida de nossa roupa,
nem o som de nossa voz,
nem a sensação de nosso corpo.

Porém de imediato,
como se também tivessem ficado sem ar,
esvaziam-se a um só tempo a memória e o esquecimento
e encontramos então
a mínima densidade possível,
as partículas sábias onde entram em contato
o vazio e a vida.

E é ali, somente ali,
onde descobrimos a salvação pelo vazio.


NOVA POESIA VERTICAL, 20

A iniciativa própria das coisas,
sua ruptura de antigas servidões,
a razão inconclusa de ser coisas,
fazem com que de repente não o sejam.

Passam assim a existir em outro plano,
a articular os signos de uma linguagem
ou a firmar a presença de outro espaço,
a percorrer as formas do vivo,
não somente a refleti-las,
a corrigir seu sonho de ser coisas
e sonhar outro sonho,
como ser outra história da vida
ou outra história sagrada:
a de um deus que apoia seu mutismo nas coisas.

Ou as coisas deixam às vezes de ser coisas
para aperfeiçoar por um instante
a inconsciência do mundo.


DÉCIMA POESIA VERTICAL, 2

Quando uma linguagem se extravia em outra linguagem,
cada palavra ou signo
clausura seu lugar,
o dissimula
como se alguém fechasse sua casa
para que ninguém a ocupe ou despoje
enquanto dure sua ausência.

Porém nenhum signo ou palavra
nunca retorna a seu lugar.
Quando uma linguagem se extravia em outra,
também a outra se perde na primeira.

Talvez por isso
cada palavra ou signo
deve voltar a nascer constantemente em outra parte.
O lugar de uma palavra
é sempre outro.


DÉCIMA POESIA VERTICAL, 43

Cheguei a sonhar com as palavras.
As palavras não me deixam dormir.
Golpeiam-me por detrás do decorado,
personagens subversivas
que até chegam a rasgar a tela
para modificar sempre a obra.

As palavras não esperam.
Até quando durarão?
São como gotas de sangue
que vão caindo sobre o texto
e também às vezes na margem.

Porém não lhes bastam as figuras do dia,
a vigília ilustrada entre a vida e a morte.
O texto é infinito
e também o é a margem.
Talvez o texto devesse estar na margem.

O sonho é uma região abandonada
ou pelo menos disponível
para a entrada necessária do verbo.

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