3 Poemas de Jorge Teillier (Chile, 1935-1996)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

A seu devido tempo, me parece que todo poeta nesta sociedade costuma se considerar um sobrevivente de uma perdida idade, um ente arcaico. A poesia é uma enferma grave, a quem são tolerados alguns caprichos à espera de sua futura morte, e também a Cinzenta dos gêneros literários, ainda que a novela seja a poesia dos tontos, segundo diz meu amigo o poeta Eduardo Molina Ventura.

A burguesia tratou de matar a poesia, para depois colecioná-la como objeto de luxo. É um signo destes tempos ver como meio mundo reúne coisas que nunca serão usadas: volantes que jamais se enredarão em uma árvore, garrafas que nunca receberão vinho, redes de pescadores que não servem para apanhar um peixe, chaves mofadas para nenhuma porta, pôsteres com efígies de mortos que de alguma forma se contribuiu para matar. O poeta é um ser marginal, porém dessa marginalidade e deste deslocamento pode nascer sua força: a de transformar a poesia em experiência vital, e aceder a outro mundo, muito além do mundo asqueroso onde vive. O poeta tende a alcançar sua antiga conexão com o dínamo das estrelas, em seu inconsciente está sua lembrança da idade de ouro à qual acode com a inocência da poesia. Se sou estranho neste mundo não sou estranho em meu próprio mundo, reflete o criador, e após muito tempo, em poesia, como diz Gunnar Ekelöf, o que não é prática resulta ser o prático.

[…]

Para mim a poesia é a luta contra nosso inimigo o tempo, e uma tentativa de integrar-se à morte, da qual tive consciência desde muito pequeno, a cujo reino pertenço desde muito pequeno, quando sentia seus passos subindo a escada que levava à torre da casa onde me trancava para ler. Sei que a maioria das pessoas que conheço e conhecemos estão mortas, creem que a morte não existe e existe somente para os demais. Por isto em meus poemas está presente a infância, porque é o tempo mais próximo da morte, e não canto uma infância boba, onde está ausente o mal, uma infância idealizada; sei muito bem que a infância é um estado que devemos alcançar, uma recreação dos sentidos para receber limpamente a admiração ante as maravilhas do mundo. Nostalgia, sim, porém do futuro, do que não nos aconteceu, mas que deveria ter acontecido.

[…]

Não sou humilde, porém tão pouco seguro de se o que escrevo vale ante os demais e ante mim mesmo. Talvez algum dia já não escreva mais poesia, talvez siga nesta tarefa que ninguém senão eu mesmo me impus, não para vender nada, mas para salvar minha alma, no sentido figurado e literal.

Bem, se dificilmente pude comunicar algo, peço desculpas afirmando, como o faz Humpty Dumpty, que as palavras não significam senão o que nós queremos que elas signifiquem. Para terminar direi que o vinho e a poesia com seu obscuro silêncio dão resposta a quanta pergunta se lhes formule, e que se meu amigo Nicanor Parra escreve “Total zero” em um artefato de epitáfio a Pablo de Rokha, prefiro dizer com Paul Éluard que “toda carícia, toda confiança sobreviverá”, e com René Char: “A cada queda das provas o poeta responde com uma salva pelo porvir”.

JORGE TEILLIER
“Sobre el mundo donde verdaderamente habito”, prólogo de uma antologia poética de Jorge Teillier. Valdivia-Santiago, outubro de 1968.


OUTONO SECRETO

Quando as amadas palavras cotidianas
perdem o sentido
e não pode mais nomear o pão,
nem a água ou a janela,
e se torna falso todo diálogo que não seja
com nossa imagem desolada,
mesmo que se vejam as estampas destroçadas
no livro do irmão mais novo,
é bom saudar os pratos e a toalha colocada sobre a mesa,
e ver que no velho armário conservam sua alegria
o licor de cereja que a avó preparou
e as maçãs colocadas para amadurecer.

Quando a forma das árvores
já não é senão a breve lembrança de sua forma,
uma mentira inventada
pela turva memória do outono,
e os dias possuem a confusão
do sótão onde ninguém sobe
e a cruel brancura da eternidade
faz a luz fugir de si mesma,
algo nos lembra da verdade
que amamos antes de saber:
os galhos se quebram ligeiramente,
o pombal está cheio de abas,
o celeiro sonha novamente com o sol,
acendemos para a festa
os lustres claros do salão empoeirado
e o silêncio revela o segredo que não queríamos ouvir.


PARA FALAR COM OS MORTOS

Para falar com os mortos
há que escolher as palavras
que eles reconheçam tão facilmente
como suas mãos
reconheciam o pelo de seus cães no escuro.
Palavras claras e calmas
como a água da torrente domesticada na taça
ou as cadeiras arrumadas pela mãe
depois que os convidados saíram.
Palavras que o barro acolha
como os pântanos os fogos-fátuos.
Para falar com os mortos
há que saber esperar:
eles são assustados
como os primeiros passos de uma criança.
Mas se tivermos paciência
um dia nos responderão
com uma folha de álamo apanhada por um espelho quebrado,
com uma chama repentinamente revivida na lareira,
com um escuro retorno de pássaros
diante do olhar de uma jovem
que aguarda imóvel na soleira.


LETRA DE TANGO

A chuva faz a cidade crescer
como uma grande rosa enferrujada.
A cidade é maior e deserta
depois que ao lado das paliçadas do Bairro Estação
os pais fogem com seus filhos vestidos de marinheiros.
Balões sem donos percorrem os telhados
e as costureiras deixam de pedalar em suas máquinas.
Ao longo do canal que move suas escamas imundas
eu corto uma lâmina para um cavalo esquelético
que a cheira e depois a rejeita.
Caminho com a gola do meu casaco erguida
esperando que surjam luzes de algum bar perdido
enquanto vestígios de amores que eu nunca tive
aparecem em meu coração
como na cidade os trilhos dos bondes
que há muito tempo deixaram de passar.

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