Tradução de Nicolau Saião (Portugal, 1946), poeta e artista plástico. *
Gérard André Loison Calandre nasceu em 1954, na Bretanha, França. Viveu na Itália, leccionando na cidade de Messina. De formação científica, tem-se mantido afastado do mundo das Letras. Autor do livro Vestígios, traduzido por Nicolau Saião e de textos esparsos sobre o seu ramo profissional e, ainda, o tomo work in progress, No Outro Lado. Visitou Portugal em 1992 e 1997. Após o falecimento de sua mulher foi viver para o Canadá francófono. Sobre Vestígios, o título é a meu ver uma autêntica descrição da poesia a que serve de continente. O que na minha opinião a define é uma ironia magoada, entre a vigília e o sonho; a certeza ou a suspeita, pelo menos, de que o quotidiano é feito de rastos, de vestígios, de representações muito reais de fragmentos que não podemos dominar mas que importa tentar se nos ofereçam coerentes e organizando dess’arte um mundo habitável e inteligível. Sente-se nesta poesia, se bem a entendo, uma indisfarçável amargura pelo tempo perdido ou que não é dado alcançar-se mas, ao mesmo tempo, um fio de alegria – diria mesmo de esperança – cifrada na possibilidade de através das palavras se atingir uma reconciliação entre o ser humano e o universo que lhe caiu em sorte. No aspecto formal, diria discursivo, revela-se uma assunção de imagens através das frases que a configuram que, mais do que fotografias ou apontamentos visuais, são como que pequenos flashes ou iluminuras retiradas, corajosa e persistentemente, da vida breve a que o autor esteve ligado e que salvou dum desaparecimento inevitável, inscrito no seio da espécie ou, mesmo, perceptível na memória dos deuses simbólicos.
NOTÍCIA
Ao declinar da tarde chego à cabana velha
de muitas gerações. O silencio deixa-me respirar.
As paredes ainda são as mesmas. Grandes manchas
de humidade, a luz de astros distantes, a presença
de pássaros desconhecidos. Os meus pensamentos que
iniciam a ronda das sombras. Era um dia era uma hora
propícia de repousos, de vozes como antigamente.
Coisas construídas e eu estou aqui
ladrar de cães entre as árvores. Eu vejo
mais do que a luz, as linhas leves dos montes.
Desce neles o perfil divino da terra molhada.
As estações na ombreira da porta Raramente lembramos
os lugares como um livro que se abre Horizonte já
inacessível.
O primo pequeno o calção sujo de terra Fotografias
pacientemente dispostas sobre a mesa de madeira
Sem detença me abandono Veredas perfumadas flores voando
pulsa lento o sangue junto ao esqueleto
Neste chão vos imagino calados como outrora
vida sem desenlace o fogo que se desenrola
amei em vós o fulgor do coaxar das rãs
o alfabeto sensível do que a escuridão me dizia.
Devagar. Deus dá-se por satisfeito espreguiça-se
no sereno entardecer. Devagar digo de mim para mim
Longa criatura arfando na terra nas horas que passam.
Abro a porta, aguardo a quietude abro a saída
uma chuva mais frágil entre duas águas que se reúnem.
A ROTA
Um mapa Encontro um mapa sobre a secretária
um mapa escolar dum colega de meu filho
A secretária A velha mesa de meu tio Vicente
Meu tio Vicente escrevendo nela cartas receitas de mercador
Lia o jornal inclinado para trás arrotava
descobria mistérios o mistério da aragem nova
as moscas zumbidoras Vagas résteas de sol a pino
Acrescentava frases num murmúrio inaudível
Tio Vicente escrevinhava era um santíssimo chato
Um beijo tio Vicente
Um mapa Olho cidades ao longe Vejo rios
que se desdobram ao amanhecer
Vejo florestas luzes renques de ruas
Regresso a esta sala E em voz baixa
olho a ombreira da porta Tiro o pigarro Prossigo.
UMA SOBRE O AVÔ
Aos que falam em alemão e repõem conceitos
aos que num bar silencioso recordam outras eras
aos que, num dia de sol, sentem o frio das horas
e tremem tremem mesmo quando o calor aperta
Aos que balbuciam e aos que adormecem quando chove
aos que anunciam a morte a vários graus de distância
Aos que medrosos esperam e sabem para onde partem
e brilham noutro lugar e velam subitamente o silêncio
Ele ficava por vezes muito quieto
arfando confiando nas coisas interrogativo
comendo dormindo recreando-se habilidosamente
Com os dedos pacientes executava tarefas
exíguas e belas, estranhamente impetuosas
Ele olhava para longe e florescia como o calcário
Quando a música começava tinha por vezes sede
Aos que nunca souberam aos que nunca gravitaram
em suas atmosferas e seus ritos
Ficava com a brancura duma voz que o chamava
O Avô devagarinho ia para outros horizontes.
BARCO
Ando cada vez mais distraído.
Não têm conta as vezes que extravio
a carteira, papéis formais ou informais
quanto a poemas versalhada então nem é bom falar
Chamaríeis a isto velhice? E que dizer
dos nomes que troco, dos equívocos a que dou lugar?
Mas afinal só há pouco passei dos quarentas
O bom cabelo escuro não dá mostras de levantar ferro
então que será?
Verdade se diga
que também me ocorrem muito melhor os trechos
de muita gente que li outrora e alguns bem puxados
olho de mocho olho de foca olho de avejão
Coloco o sobretudo em cima duma cadeira e reparo
as coisas da casa desta e de outras não minhas
parece que estão numa outra luminosidade
olho de galo olho de rena olho de cavalo
a geada passa não tem efeito na paisagem
esqueço-me e talvez que isso seja um bem.
A minha perna começa a deixar-me em paz
ontem li um jornal e nele um deus qualquer adormeceu
olho de vaca olho de cão olho de pássaro
Um meu amigo que escrevia para uma revista está bem pior
ficou como um torso integral depois dum grande tombo
Mas dizem-me não deves chamar o Sebastião
a Jean Sebastian Bach é má-criação
denota um à-vontade malcheiroso para com os génios
Mas esqueço-me e digo o Sebastião
se pergunto por um disco dele a um familiar
Como compreender tudo isto? Como desfazê-lo?
Olho de coruja olho de bode olho de galinha
E, não me dirão, como conquistar os tempos?
Como esquecer que a amargura é mesmo assim virtual
olho de mula olho de abutre olho de qualquer coisa
que nunca se teve, não se terá, nem mesmo se inventa.
UM BONECO DESENHADO POR UMA CRIANÇA
Há algures qualquer coisa que nos escapa
Este nariz que se retrai Uma perna que esvoaça
Um algarismo desenhado Não é bem algarismo
É uma pequena estrela
Estrelinha do norte repara bem
este é o braço para muitas idades
a idade do sul e do oeste
as mãos que são plantas nocturnas
Muitos anos mais tarde alguém encontrará
o papel amarrotado numa gaveta perdida
Olha é a cara do primo Florêncio
Florêncio é um velho Sorri
O seu olhar fica saudoso Por um momento
Por um momento tudo fica parado e incólume.
SOBRE UM QUADRO DE VELASQUEZ
Em vida tinhas tudo, menos a morte.
Agora, estás completo. Em figura
em pedaços dispersos nos muitos olhos
que te visitaram já no esquife
ou através dos séculos. Completo
como um risco no céu, ou um canto
que alguém entoa ao amanhecer. Completo
como a tinta o escuro a própria madeira
Toada pouco a pouco desfazendo-se.
O teu quarto, a tua roupa, os gestos
que fizeste durante a pose destinada
vivem no mundo por detrás de ti
no mundo que ora há ora não há por detrás de ti
Desaparecem. E na rua
que o pintor calcorreava todos os dias
existirá ainda a tua memória
uma interrogação, talvez uma dúvida?
A prova é que não falas, ou então tudo dizes
Leve rasto de fumo inscrito nos anos perdidos.
VESTÍGIOS
Na Rua do Touro, ao pé das escadinhas
que antecedem a grande descida da praça do Tribunal
entrei por uns minutos no livreiro-antiquário
Às vezes vejo-me ali como que em séculos passados
Palaciano se calhar aproximo-me com a boca aberta
Restos de sono vontade louca de ler comichão
E diz-me o proprietário nos seus tempos um belo compincha
E ao dizer-me, não vou repeti-lo, mostra-me uma folha de papel
não de árvore verbena teixo das Índias eucalipto
Era um manuscrito de Manzonni
Só deus sabe como lhe teria ido parar às mãos
A letra muito firme as ideias límpidas um ar de quem
lavava as mãos simpaticamente depois de obrar
Tudo se conjuga
Tudo se irmana mesmo em casos particulares
linhas interseccionando-se quebradas abatidas
de rostos de passos que se perderam de motivos
Uma escrita articulada entre si e rigorosa
obedecendo bem a leis exactas e ao eventual aparo
Pouco depois no Café olho algumas folhas onde tracei
afirmações, ou dúvidas, ou restos de música retórica piolhenta
perdão um solfejo de palavras que afinal me dizem muito
letra mal acabada que pena um pouco rasca
emendas riscos agudos e graves e o papel amarfanhado
Por vezes seremos obrigados a escrever dissonâncias
mas faz favor não tenho o jeito dos séculos
o amplexo mesmo a lisura e isso me custa
Neste debate gramatical a que eu mesmo presido.
DESENHO
Eu só escrevo coisas que me acontecem.
Falo dos candeeiros que acendi, das rotações
da Terra. Assim, por exemplo: ergo a mão
aponto na direcção daquela estrela, engano-me
será estrela, planeta, evasão na retina
mancha nocturna num sistema provavelmente oculto?
A lembrança dum passeio junto a uma ribeira
Engano-me, era um pássaro voando, voando no céu obscuro
engano-me, era outra recordação, filme olhado de relance
conversa num lugar profanado, impenetrável miragem
Engano-me, era um momento possivelmente perdido
Eu só falo de coisas que jamais sei pertencerem-me
Engano-me, o nosso olhar não está aqui
a verdade conhece-se descobriu-se em si mesma muitas vezes
engano-me agora só existe o dom da obscuridade
Mas engano-me tudo é claro, nada é claro, somente
um nome, como a cinza, cresce e ilumina a manhã.
*Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta e artista plástico, com atividades ligadas ao Surrealismo desde o princípio, quando participou de várias mostras internacionais de arte postal. Em 1984, juntamente com Mário Cesariny (1923-2006) e Cabral Martins (1950), organizou a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”. Estudioso e tradutor da obra de H. P. Lovecraft, em 2002 organizou a primeira edição integral em todo o mundo de Fungi From Yuggoth (1943), tendo também a ilustrado.