5 Poemas de Maria Lúcia Dal Farra

| |

Maria Lúcia Dal Farra (São Paulo, 1944). Poeta, ensaísta e conferencista, autora de quatro livros de poesia que se destacam entre os melhores de nossa lírica: Livro de Auras (1994), Livro de Possuídos (2002), Alumbramentos (2012) e Terceto para o fim dos tempos (2017). Além deles, é autora de um livro de contos, Inquilina do Intervalo (2005) e dois outros de crítica literária: O Narrador Ensimesmado (1978) e A Alquimia da Linguagem (1994), este último em Portugal.


ARTES

Evito rimas, recuso acrobacias
apenas do frugal me ocupo inteira:
tomo como medida o arame do varal
e entremeio nele (sensual, promíscua)
toalha de mesa com lençol.

A casa deságua no quintal,
alta se amolda aos ramos das mangueiras.
De quando em vez faz rumo, sai pra rua
(sem pelo) presa pela lua cheia
ou terna atrás de longe realejo.

Fica tudo quarando enquanto
cozinho ou vasculho a cumeeira
(esteio onde é mais vivo o espírito do meu pai)
e escapa das molduras uma aura, um certo enleio
com que apanho luz para as candeias,

com que canto funcionando este tear.


ABÓBORA

Despojo-me de tudo quanto tenho
para a tua boca salgada ou doce:
cambuquira, massa, semente, fruto.
Até outro acolho em mim,
ramo duplo das artes.

Bandolim? Violão?
Para meu desconcerto,
abelhas afinam-se no fundo diapasão da minha flor,
na zona mais erógena;
e então, ah, com que cócegas me torço em vivos contornos,
e cresço, esculpindo curvas,
a cor exalando túrgida a úmida temperatura
do meu mistério gozoso:
íntimo encontro do delgado pescoço com quadris –
coito.

Concórdia de contrários,
senhora das duas naturezas
(andrógina)
Ainda assim rastejo
– menina que sou! –
a entregar-me ao gosto da lagarta-rosca

e das brocas.


A MÚSICA

Flexível como a corda que a tange
ela vibra. O leão aprofundado no instrumento
espera o momento certo para saltar –
que é quando se casa o sopro
com as cordas.

Tudo lhe á de lembrar a floresta
o som do vento
o riacho quebrando-se
a flecha que o espera para segui-lo
sem, contudo, nunca o alcançar.

A música é para ouvir e lembrar
(sobretudo)
o jamais vivido,
o que não teve memória.
Mesmo o monocorde das cores
não impede a passagem do que silva e se alça
– como por encanto.
Daí seu fascínio,
a mágica a perscrutar
(nas nossas fibras)
a ressonância que a funda
– apenas a ela.


LOUCURA

A órbita da loucura é imensa.

Aviso às incautas criaturas
tanto quanto
aos navegantes sem rumo.
Nela se movem constelações superiores
ilimitadas águas
e as mãos com que Deus nos acena
(segundo a segundo)
com a sua graça.

Consolos prontos a redimir o mundo
palavras ausentes de escrita
ali se asilam
e mais
o risco do iminente abissal.

É tão amplo o rosto da loucura
que podem caber nele
quaisquer
das nossas muitas faces

– inclusive esta com que agora me empenho
em apreendê-lo.


LA DAME À LA LICORNE

A Vanessa Droz

A dama se faz acompanhar do unicórnio
em todas as telas
– ele passeia pelos sentidos dela.
Faz gosto vê-lo assim,
doméstico,
mimoso animal de estimação
indeciso entre cão e gato.

Dela,
a vista se espraia
pelo corno branco de lua
enquanto tateia na pluma que o recobre
a ave de cascos suspensa
sobre o espírito da tapeçaria.
Dele,
o focinho inspira flores ao derredor,
ramagens, maçã, perfumes:
o meigo bichinho ensina à dama o regime do sol.
Sua voz indivisa é guia
e a dama apanha as cifras:
são raízes, fósseis que se desprendem das pedras,
ocultas nascentes reclamando o ouvido.

Ele passa-lhe tudo o que sabe.
Mas é o amor dela que lhe dá sentido.

6 comentários em “5 Poemas de Maria Lúcia Dal Farra”

  1. Em meio a tantos desafios vividos recentemente, o encontro inesperado com esses belos poemas de Maria Lúcia Dal Farra trouxe uma brisa alegre e terna para uma tarde que pouco prometia.

    Responder

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!