Curadoria e tradução de Floriano Martins
Desde que Manuel Scorza (1928-1983) publicou o primeiro volume de sua saga novelística em 1970, a vasta novelística do autor de La guerra silenciosa sem querer querendo apagou a imagem de poeta que ele mesmo vinha lavrando desde 1950 a cavalo, entre a militância política e a poesia de um vivo lirismo nerudiano.
O êxito editorial do fabulador relegou a obra poética de Scorza e, sob certa forma, também tornou invisível outras tarefas importantes que cumprira nos anos 1960 como criador de uma ambiciosa atividade editorial que teve lugar não apenas no Peru, mas em toda América, com seus Populivros (uma maneira singular de aproximar as multidões dos livros clássicos da literatura latino-americana).
Eu queria resgatar nesta oportunidade um rosto pouco conhecido de Scorza: o político que por seus ideais sofreu perseguição, prisão, desterro, e, sem dúvida, seu êxito maior nestas lides: que sua voz tenha uma prédica notável, que suas posições e frases políticas, às vezes tão controvertidas, tão polêmicas, fossem escutadas pelas grandes massas economicamente deprimidas nos povoados andinos e nas zonas marginais das grandes cidades do Peru.
Em mais de uma oportunidade estive a seu lado, muito além de divergências estratégicas. Recordo agora que em 1966, por ocasião do Primeiro Encontro de Poetas na cidade de Chiclayo, no norte de Lima, chegou até o local da casa da cultura dessa cidade a notícia de que haviam prendido Walter Palacios, um líder estudantil e político, a quem acusavam de ser parte dos movimentos subversivos daquele momento no Peru e se temia que poderiam torturá-lo e o fazer desaparecer sem pistas, seguindo uma política repressiva muito frequente naqueles anos.
Manuel Scorza, acaso recordando seus anos de estudante perseguido e preso e desterrado para a Bolívia, o México, em mais de uma oportunidade, propôs ir até a delegacia para nos solidarizarmos com aquele jovem dirigente político. E arengou conosco e juntamente com o poeta Juan Ríos, e outros poetas, marchamos pelas ruas de Chiclayo rumo à delegacia. Já diante do delegado, Scorza adiantou-se à nossa manifestação e disse de maneira enfática que ele se propunha como preso na condição de que libertassem Walter Palacios.
Horas antes Manuel Scorza nos havia deslumbrado com sua grande riqueza verbal, nos havia comovido com seus versos oníricos, com sabores surrealistas, de seu livro Desengaños del mago. E pensamos que poucos como ele haviam conseguido unir, em suas melhores páginas, a beleza verbal com os ares de justiça social tão necessários em nosso continente.
HILDEBRANDO PÉREZ GRANDE / Depoimento cedido para Um novo continente – Poesia e Surrealismo na América (2016), de Floriano Martins.
VALSA VERDE
A Rodolfo Gómez Silva
Não viajaremos a estranhas ilhas,
a países de cabeleira incandescente.
Não partiremos,
não sairemos da cidade ululante.
Sob as árvores vertiginosas do crepúsculo
vestidos de viúvos, nos veremos.
Nas estepes dos gentios
tu me verás, eu te verei, nós nos veremos.
E me dirás: “faz frio” no inverno,
e te direi: “faz calor” – no verão.
E ao redor de nós
as lembranças de bico ensanguentado.
As hélices amarelas do outono
degolando pássaros inocentes.
Certa tarde – qualquer tarde –
em uma esquina nos desconheceremos.
E pelas ruas diferentes
à velhice iremos.
VALSA CINZA
As torres mais valentes
agacham a cabeça
quando chega o outono
com a plumagem CRIVADA.
No outono as árvores
acendem seus olhos mais tristes.
Outono, no entanto, era
quando vi em teus olhos
comarcas onde ardia outro sol.
Agosto, o coxo malvado,
cuspia as janelas;
a névoa grasnava nos telhados.
Porém nós caminhávamos
– oh pradarias, oh pontes –
por países de diamante.
Teus vinte anos saltavam como peixes
e o coração MERLIN se me saltava.
No palácio dos vaga-lumes
bailamos danças lancinantes.
Hoje o outono chega em ti
e sem ti os crepúsculos desalentados
mal sabem por seus velhos trajes.
Os pássaros idiotas
repetem esverdeados
as canções de ontem.
Lentas cruzam o céu
as tardes desastrosas.
Pobre é o mundo:
apenas tu autorizaste o maravilhoso.
Viver é longo.
Ave carniceira é a Melancolia.
DESENGANOS DO MAGO
I.
Antigamente eu vivia em uma torre que custodiavam tardes de sussurrantes colares.
Eu espreitava as caravanas que, ao cair dos crepúsculos, entravam nos pátios empoeirados de azul.
Eu jamais dormia.
Porém talvez tenha dormido, talvez tenha sonhado que um rouxinol sedento secava os mares.
Porque tartarugas suspeitas começaram a me seguir.
Eu tinha dez anos e nas tardes olhava flutuar nos tanques cidades de olhos magnéticos.
Cada noite a maré depositava nas árvores ilhas adormecidas.
Em bosques de mel aguardava Lucy, a diminuta menina de cornos reluzentes.
Lucy soluçava pelos elefantes enredados em minha barba.
Lucy era uma gaivota.
Eu era um caranguejo, um lírio, uma árvore relampejante.
II.
Débora: se alguma vez desceres dos telhados, se alguma vez emergires dos cemitérios onde vives, e cruzares (ave ou demônio) a Praça do Urso, poderás me ver sob a chuva te esperando. Porque amei tua caveira de coelho, amei até enlouquecer teu rosto daninho.
Débora e eu cavalgamos um escaravelho de olhos penetrantes e nos dias de tristeza percorremos espelhos, uniformizados de azul.
Débora matava as pulgas que havia nela enquanto eu recitava meus Grandes Cantos.
Apenas uma vez me permitiu beijá-la. Foi nos jardins: a primavera assobiava sua tonadilha enquanto ela movia a cauda, assustada.
Porém tão logo a beijei, sacudiu o pólen de sua saia, uivou à lua e fugiu pelos desfiladeiros.
Eu felizmente era uma toupeira, eu afortunadamente cavei um túnel.
Eu estava apenas amancebado com a lua.
Bem sabes, Débora, minha incomparável aranha.
Oh minha calandra!
Oh minha cítara enlutada!
III.
Antigamente fui um Mago Melancólico e invulneráveis panteras me seguiam agasalhadas em suas sedas.
Graças a um conjuro meu brotaram mananciais de rubi.
Povoei os céus de monstros bondosos.
Eu tinha vinte anos: o ano começava.
Não tremi quando a abominável tripulação pôs a prosa no paraíso.
Proa no paraíso, charcos de azul!
(“Jamais te trairei!, não me renderei enquanto chapinhem as sereias!” – Menti à musa.)
Eu era imortal, era divino.
Remontei rios de dentes eriçados.
Era o tempo maldito de minha geração.
Ainda escuto gritar os unicórnios pisados pela multidão.
Ainda ouço o povo rugindo para que abdique.
Porém eu não mudo de plumagem: nego-me a iluminar com meu canto os fétidos estábulos da noite.
Não mais embustes:
Que o Poeta retire a máscara e mostre seu bico afiado.
Porque raivosos exércitos procuram por nós.
Porém eu voo até o futuro, me aninho entre os imortais.
Prometo a todos que uma brisa de calandras refrescará o inferno.
IV.
Porém chegou o tempo do morcego.
Pelos caminhos enforcaram os elfos.
Pintaram mal as fadas antes de forçá-las.
Minhas magias fracassaram.
Vaguei por planícies de trapo.
Enchi-me de moscas como um gordo verão.
Estive em Samarkanda, a de cabeça submersa.
Apenas insetos povoavam tua urbe, Desesperação!, Oh Desolado, apenas seu povo cego te viu envelhecer diante das muralhas!
Atravessei salões enfeitados onde o tigre farejava: tigres gigantescos entre cujas garras passam rios apavorados.
Até que fugi daquelas tribos.
Assim cheguei a Nínive, a de olhos sangrentos.
A tarde era um peixe de tetas fosfóricas: o rio arrastava impérios de ouro dançante: eu mesmo era uma serpente entre tanta beleza.
Tive sorte: fui amamentado por uma fêmea cuja gordura aniquilava os naturais.
Eu saúdo a que levou visgo e ratazanas frescas à minha toca, celebro a que lambia meus cabelos dolorosamente.
Oh Nínive vestida com minha alegria.
Nínive de olhos inacessíveis
Nínive de torres sonolentas
Nínive onde ficou meu coração ardendo
Assim começavam os anos de minhas inesquecíveis desgraças, aquele funesto amor que foi minha ruína, meu tesouro de cabelos azuis.
V.
Ao sair me derrubaram as rabadas do vento enlouquecido pelos piolhos.
Para viver compus canções: a turba me jogava ouro por entre os barrotes.
Já era tarde.
Adoeci.
Agonizei nos bosques. Meu trono era a lua; meu cetro, o uivo do lobo.
O sol me penteava, adulavam-me seus hipócritas vassalos.
Eu recordava o passado, quando sobre os delfins nas baías da aurora, fomos horrivelmente felizes.
Reclinei a fronte nas catedrais.
Caíam as torres envenenadas.
Sangravam os obeliscos.
Ao amanhecer, me senti melhor: estava morto.
Então o mar ficou grisalho, as ilhas fugiram.
DÉBORA
A Juan Ríos
I.
Bem sei que com teu olho único – com teu olho de monstro acostumado ao espanto – invisível e alta, lúbrica e negra, me vês, ferozmente, Débora.
Esta é a hora em que no pavor de teus antros te vestes de noiva e sobes arfando à tua torre anã, para contemplar-me amorosa.
Esta é a hora em que, no fundo dos mares, os magos sonolentos entreabrem suas esverdeadas conchas e a fatídicas virgens fervem em suas ondas meu passado.
Meu passado!
Em cidades desaparecidas, em templos desfigurados, pulso o pestilento alaúde cuja música suportam apenas os imortais: das janelas tenho visto mancar os outonos, tenho visto – com tristeza – os ventos arrastarem baleias.
Recordo a deslumbrante plumagem dos canalhas, celebro tua cauda infatigável, choro porque antigamente, a esta hora, pousavas em meu ombro, papagaio tenebroso.
Eu sei bem – bem sei, amor meu – que agora mesmo te sentas na profundidade de teu trono e me descobres, sob o furioso mar, profundamente adormecido.
II.
Quando passo sob tuas sacadas, quando atravesso os pátios, arquejante sob o peso precioso de minha carcaça, tu observas a neve de remotos países.
Eu cruzo humildemente o jardim, porém tu não desces para me ver: estás absorta diante do roseiral de bico curvado.
Talvez seja o crepúsculo: teu rosto arde estranhamente.
Vou então a teu encontro: cruzo empoeirados salões, percorro palácios submersos, até que vejo piscar teus olhos pantanosos.
Guinchas então, saltas de galho em galho e foges grasnando como se tivesses a pata quebrada.
III.
Ainda era noite quando a Melancolia apareceu no alto de sua torra lívida.
Baixaste os olhos.
Peixes horrendos riscaram o ar, perolados de ira.
Compreendi então que jamais regressariam os dias alegres, as inesquecíveis tardes idiotas, as felizes noites tediosas.
Enlouquecido, entreabri as luxuosas cortinas do inverno arruinado.
Sob a lua, arquejantes jacarés de seda nos seguiam.
Envelhecidos tigres de latão se debruçavam nas janelas para te ver, pela última vez, com olhos furibundos.
Como quem atravessa o passado cruzei a cidade adormecida: roncavam ainda as torres obesas, empanzinadas de crepúsculo.
Na aurora, prodigiosamente cansado, me detive entre as anêmonas: fechei os olhos em tenebrosa paz: desde então durmo: é raro que cheguem até aqui os peixes, muito raro que os pacíficos radiolários disputem pelos olhos das pudicas holotúrias.
IV.
Já não são verdes as plumas dos dinossauros, nem as hienas se cobrem de frutos quando chega a amável primavera; o polvo não mais sacode seu bico deslumbrante nos castelos do estio.
Eu também estou só, rodeado de ilhas melancólicas e, invejoso, percorro os pátios azuis do mar até que o grande peixe da angústia quebra com suas rabanadas a cristaleira do arco-íris.
Não sou belo, nem ágil como o gafanhoto: escondo-me entre as gramas e devo esperar que guinche o mocho para emergir por entre as gretas.
Muitas vezes gira a odiosa lua antes que te contemplem meus olhos úmidos.
Porém esta noite vieste envolta em uma beleza que não é deste mundo e me olhaste tristemente.
Acariciaste meu lombo tremido e teus olhos se encheram de águas carnívoras!
V.
Estive submerso por longos invernos, dormi ferozmente sob os átrios, diante de minha face os mendigos celebraram suas missas.
O vento derruba invisíveis torreões, o inverno folheia seu velho livro e eu recordo Débora.
Oh gentis espumas, tímidos mares anões, em vossos sagrados peitos reclinei minha galhada de ouro quando Débora me amava!
Era nos desvãos do décimo terceiro mês, era quando meu coração pastava nas pradarias infantis do mar.
Em sonhos, cristalizado de raiva, vi que o céu adoecia e as estrelas tossiam e o sol se cobria de moscas vindas do Oriente.
Oh Débora: quando despertei a corrompida Deusa de Marfim soluçava; diante dos templos, sob o sol subterrâneo, tua caveira sorria.
VI.
Se algum dia, em tua barbuda torre, em teu país paralisado, ouvires arquejar as enferrujadas hélices do ódio, compreenderás que não menti.
Porque amei teu rosto azul, idolatrei teus olhos viciosos, tua barriga inchada de fungos mortais.
Não renego que te vi entre os cânticos de seda dos lunáticos, anunciando os reinos deslumbrantes da peste.
Que amor, que amor pudeste sentir por mim, lívida gralha?
Era verão quando te desprendeste dos campanários – era um escamoso dia de verão – quando emergiste entre as algas gritando: “Vou te perder!”
Eu guinchei de alegria porque havia muitos meses que me negavas teus beijos: embriagado de glória, arrastei pelos cabelos a pobre tarde.
Naquela gruta fomos felizes e os passantes empalideceram quando Débora e eu, docemente abraçados, cruzamos as ilhas, seguidos pelos bandos de aves que levavam às costas nossos mantos.
Débora: tive que partir.
A tempestade tem olhos cintilantes: meu coração padece naquela ilha branca.
Débora: eu sei que me ouves, eu sei que em tua guarida escutas o assobio amarelo de nossa inesquecível cobra e então soluças e depois o esquecimento.
DALMÁCIA
Como Jonas vivi minha juventude no ventre de Dalmácia.
Brisas eram meus cabelos, tufões minhas sobrancelhas.
Em teu ventre mais alto que Órion milhões de estorninhos revoavam.
Eu submergia a buscar peixinhos, percorria córregos, adentrava os iglus para dormir com fêmeas ondulantes.
O vento de março quebra os frascos onde Dalmácia guarda nossos fetos.
Vilões: este é o tempo em que menstruam os anos.
Éramos felizes: por nossos anéis Saturno saltava alegremente.
Jaulas de alísios, auroras palpitantes Dalmácia me trazia.
Porém faltaram as brisas, as pestes despovoaram os mares.
Sob sóis negros, a língua seca, vagamos por oceanos calvos.
Dalmácia agonizante me vomitou sobre as praias,
Eu quis bebê-la
Conduzi-la em meus braços até países verdes.
Eu gritei desde as escarpas:
Dalmácia, é difícil viver!
É difícil levar aos lábios taças
fumegantes de sonhos!
Não me ouvia.
Entre os tímpanos nadava para sempre neblina.