.Roberto Piva e a loucura dos ventos

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JOSÉ JUVA (PE) Mamífero, poeta, ensaísta. Jornalista, mestre e doutorando em teoria da literatura. Publicou os livros: Deixe a visão chegar: a poética xamânica de roberto piva (2012), Vupa (2013) e Breve breu – escritos sobre literatura & cinema (2014).


A primeira publicação importante dos poemas de Roberto Piva foi na Antologia dos Novíssimos, em 1961, num projeto do Massao Ohno, importante editor independente brasileiro. Agora, pouco mais de cinqüenta anos nos separam deste instante inicial. Roberto Piva nasceu em São Paulo, em 1937, e morreu em 2010. Formou-se em sociologia, deu aulas no ginasial e foi também produtor de shows de rock. Agora, seu percurso poético pode ser apreciado em sua quase plenitude – existe um volume de poemas inéditos, intitulado Corações de Hot-Dog, no prelo.

Podemos compreender as principais tendências e práticas poética de Roberto Piva, com o seguinte desenho: num primeiro momento, construído no delírio de versos longos, num diálogo fecundo com a beat generation, como em seu livro de estreia, Paranoia, de 1963; em seguida, realizado nos cruzamentos experimentais e psicodélicos entre poesia e prosa, como em Abra os olhos e diga ah!, de 1976; por fim, calcado no êxtase de um erotismo sagrado, visionário, místico, como em Ciclones, de 1997.

Estas divisões servem para nos situar, mas não devem nos obscurecer as continuidades, misturas e aspectos que se espalham por toda a obra. Em sua poética podemos captar tanto registros iconoclastas e selvagens quanto passagens sublimes e serenas, de versos como “o universo é cuspido pelo cu sangrento de um Deus-Cadela”, ou poemas, feito o delicado:

o arco-íris
é o colar do feiticeiro
que apaga o dia
com a mão direita
& inaugura a noite
com a mão esquerda.

Na poética de Roberto Piva, saberes ancestrais, míticos e místicos, se irmanam num diálogo com as contribuições de um modernismo brasileiro (com forte presença das figuras de Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Jorge de Lima e Murilo Mendes), e com o surrealismo e a poesia beat – inclusive na perseguição de um estado de coisas em que a literatura e a vida estejam reunidas, imbricadas num mesmo gesto, movimento. A poética de Roberto Piva desencadeia forças e energias de transgressão, uma escritura atravessada pelo devaneio e pela intuição alucinada.

Movendo-se no magma da contracultura da década de 60, o poeta partilhou interesses com poetas companheiros de geração pela busca de caminhos criativos e críticos (religiões do êxtase, como o dionisismo, busca de estados alterados de consciência, erotismo embebido no desregramento dos sentidos, etc.) que fornecessem substrato para a superação dos limites e interditos colocados pela infiltração cotidiana dos valores tecnocráticos. O animismo e a possessão, por exemplo, no poema Incorporando o jaguar:

na escada do vento
o sonho
folha que cura
pequeno exu que
dança extático.

Tal poética, como num percurso iniciático, envolve os exercícios delirantes e nonsense que situam Paranoia (1963) e Piazzas (1964) e replicam as necessidades de despojamento dos sentidos habituais, embotados, para a elaboração e emergência de novos significados e valores. Em seguida, com as mobilizações alucinatórias e o acento psicodélico de obras como Abra os olhos e diga ah! (1975), Coxas (1979), 20 poemas com brócoli (1981) e Quizumba (1983), o poeta indica os mergulhos em estados alterados de consciência, vetores para a construção de novos sentidos, movimentação por paragens não-localizáveis pela inspeção racional – como na viagem por mundos subterrâneos e celestes efetuada pelo xamã. E, por fim, ao termo do percurso iniciático/poético, as intuições visionárias, extáticas e iluminadas gestadas em Ciclones (1997) e Estranhos Sinais de Saturno (2008).

Escrever sobre Roberto Piva nos coloca algumas questões a respeito das visões do autor (implicadas nas declarações a seguir) sobre as relações entre o poeta e a poesia, literatura (e as artes, de maneira geral) e vida, linguagem e cosmos, sagrado e profano, existência e êxtase, revolta e capitalismo, mundo natural e cidade – para nos determos em algumas indicações de trilhas possíveis para uma investigação. Roberto Piva é um poeta que disse/registrou: “não acredito em poeta experimental sem vida experimental”, “a palavra registrada em livro é mera extensão (sublimada) do que sobrou da orgia”, “o poeta precisa se colocar no coração anárquico da vida”, “o coito anal derruba o capital”, “eu faço minha oração para o arco-íris”, “o caminho do poeta/xamã é o caminho do coração”, “poesia é iniciação (…) os primeiros poetas eram xamãs e curandeiros”, “os poetas brasileiros têm que deixar de serem broxas pra serem bruxos”, “eu quero a onça-pintada na Avenida São João”, “o estado mantém as pessoas ocupadas o tempo integral para que elas não pensem eroticamente, poeticamente, libertariamente”, “o delírio foi afastado da teoria do conhecimento”, “O Brasil precisa de poetas perseguidos pela polícia, o resto é literatura”.

O mito não é estranho na composição de espaço e tempo conflagrada pela poética visionária de Roberto Piva. No corpo dos poemas, a aparição de personagens tais como Dioniso, Shiva, Exu, Xangô, Eros, Satã, Amon Ra, Buda é freqüente – tais figuras e outras se embaralham num painel construído ainda com referências diversas colhidas na plataforma mítica xamânica, por exemplo, em algumas figuras de ascensão (pássaros, plantas, astros) e também alusões às presenças de outras ordens diversas (artistas, místicos, ovnis, etc.). A compreensão da possibilidade do mito (sua plataforma, sentido, forma de proceder) no seio do industrialismo e da racionalidade nos auxilia, nos habitua ao conjunto de visões que dialogam com as criações poéticas de Roberto Piva e seus desdobramentos e idéias implicadas.

Poderíamos dizer que o mito não tem um tempo. Antes, é a manifestação atemporal na carne do instante: aparece no passado, no presente e no futuro e transporta os indivíduos para jornadas interiores e relações dialógicas com a multidão de corpos da vida (animais, plantas, astros, etc.). E o poema é uma aparição inscrita na história, mas que não cessa de dizer suas ultrapassagens, como indica Piva num poema curtíssimo e intenso:

esqueleto da lua
o tempo
tambor tão frágil
vomitando a noite.

Situando a origem da poesia na prática xamânica, Piva indica camadas de significados a serem escavados numa leitura de seus poemas como visões do inconsciente numa perambulação por siderações cósmicas e míticas. Dito de outro modo, a atenção crítica sobre os poemas de Roberto Piva amplia seu espectro de atuação ao considerar os elementos xamânicos implicados na escritura e materia-lizados na composição, nos arranjos das visões. A busca, a jornada de Roberto Piva foi a de um poeta que percebe as afinidades entre a prática poética e as práticas rituais e mágicas.

Assim, uma leitura xamânica da figura do poeta, desprendida da obra de Piva, nos indica que o poeta é um sujeito que vive, viaja e vê as possibilidades de cruzamentos e articulações entre as visões interiores e o mundo da vida; um sujeito que se aventura para embaralhar, escavar, fundir, burlar os limites entre linguagem e vida; um sujeito que dilui as fronteiras entre a vigília e o sonho; um sujeito que embarca numa jornada de ascensão celeste e descenso infernal para ampliar as possibilidades de libertação da alma humana das opressões existenciais; um sujeito que se lança no contato com as forças da psique e a linguagem do cosmos para o aumento no conhecimento da morte.

Em Ciclones e Estranhos Sinais de Saturno, as “paranoias” de Roberto Piva o conduziram poeticamente para longe dos cenários desequilibrados, caóticos e perversos da cidade de São Paulo. Parece-nos que o poeta encontrou, na construção da cena xamânica, o asilo, o refúgio distante da “cidade de lábios tristes e trêmulos” (verso de Visão 1961, poema presente em Paranoia). Em lugar da presença constante de “praças”, “ruas”, “esquinas”, “avenidas”, multidões agoniadas e do verso longo dionisíaco e ditirâmbico presente na produção inicial do poeta (como em Paranóia), os versos curtos, “fotográficos”, próximos da concisão do haicai, de imagens condensadas do espaço aberto e de horizonte infinito das materia-lizações do mundo natural (mares, desertos, planícies, céu, constelações, montanhas, etc.). Eis um poema exemplar destas configurações:

Eu caminho seguindo
o sol
sonhando saídas
definitivas da
cidade-sucata
isto é possível
num dia de
visceral beleza
quando o vento
feiticeiro
tocar o navio pirata
da alma
a quilômetros de alegria.

Para o poeta, as ruas da cidade não são espaços de regeneração, de contato com as potências de um devir cósmico. Até mesmo o vento, presente em múltiplas ocasiões, distribuído entre correntes que perambulam por todas as direções do planeta, força em movimento que relembra a idéia de mente e alma para as percepções baseadas nas correspondências entre os elementos do mundo natural e o homem, não consegue transpor a clausura, a “permanente falha mecânica” da mentalidade de uma época encarcerada numa visão de mundo embotada e fraturada onde não se materializa “O Maravilhoso”.

FOTO | OS DENTES DA MEMÓRIA – AZOUGUE

Roberto Piva registra poeticamente a aproximação intuitiva do mundo natural e instaura uma relação dialógica, não-mecanizada com a natureza. Assim, o poeta se move dentro das esferas de um mundo natural prenhe de significados cósmicos. O sol, o céu, o deserto, o vento, o verão, o dia, a floresta, tudo conduz à apreciação das presenças cósmicas, que transcendem a condição humana ao mesmo tempo em que se inscrevem no cotidiano vivencial dos humanos. O poema se transforma num espaço para o encontro vertiginoso entre o poeta e os conteúdos simbólicos e míticos inscritos no mundo natural de maneira cifrada. A poética visionária de Piva busca, então, realizar, materializar uma leitura orgânica da realidade. A poesia opera uma escritura capaz de colocar em movimento os mananciais simbólicos dos lugares de poder da existência. O poeta sugere deslocamentos vivenciais, de busca de hierofanias, errâncias:

frio nas fronteiras do topázio
abandonei-me ao mês do Deus do Vento
floresce no meu corpo um ponto secreto
entre os cometas vivos do êxtase.

A construção poética de Roberto Piva, calcada na visão xamânica de uma paisagem suspensa num tempo mágico, explora os vínculos íntimos entre o regime noturno e o regime diurno da vida terrestre, entre as aparições do sol e da lua, do dia e das estrelas e nos levam para uma dimensão onde a “Poesia é desatino / Abrindo a Noite / No excesso do Dia”. A poética xamânica de Roberto Piva estimula apreensões e en-tendimentos sobre a necessidade da reinvenção dos hábitos estabelecidos dos sujeitos mergulhados numa sociedade de consumo, que mecaniza as relações entre os humanos e entre estes e as forças espirituais do mundo natural. Esta poética destaca a importância das iniciações míticas permitidas pela aproximação e contato fecundo com elementos do cenário cósmico.

Ao gestar uma sensibilidade xamânica para a composição de um erotismo sagrado, Roberto Piva põe em jogo, desencadeia o exercício de confrontos entre as visões míticas propiciadas pelas vivências das forças cósmicas e do mundo natural (deglutidos por uma sensibilidade subversiva) e as normas e limites impostos pela ordem social planetária vigente e a hegemonia da lógica de trabalho e consumo – incluindo, ainda, um confronto com as religiosidades que se firmam na negação do corpo e do erotismo e no estabelecimento de uma autoridade divina única e incontestável, institucionalizada.

FOTO | OS DENTES DA MEMÓRIA – AZOUGUE

Piva, como um xamã furioso e visionário, forjou poemas que situam uma perambulação por regiões infernais e paragens celestes para escapar ao cerco das domesticações dos instintos libertários e sensuais – clausura que informa e opera as engrenagens do cotidiano e suas mordaças contra o tesão, o ócio e a contemplação em nome da produção, da circulação de bens e do consumo. A poética xamânica de Roberto Piva incita a um transbordamento de sensações e pulsões eróticas, indicando arrebatamentos íntimos e transcendentes que extrapolem as amarras da produtividade.

O lugar xamânico erigido por suas construções poéticas torna possível recolher estilhaços de imagens que nos conduzem para a emergência de valores que confrontam as forças hegemônicas da ideologia dominante no capitalismo tardio e nas religiões monoteístas. Ao recombinar magicamente mitos e experiências biográficas numa escritura delirante, o poeta/xamã nos permite encontrar os vetores para a idéia e prática da poesia como possibilidade de reencantamento do mundo e potência curativa para as desordens psicossociais que acometem os sujeitos de nossos dias. A poesia, assim como as narrativas performáticas do xamã, transborda novas sensibilidades, possibilita transportes para regiões desconhecidas pela inspeção racional e pode reverberar como potência curativa, inclusive no excesso:

seja devasso
seja vulcão
seja andrógino
cavalo de Dionysos
no diamante mais precioso.

A leitura deste universo criativo nos educa para a possibilidade do exercício de uma micropolítica, de uma sabotagem contra os valores hegemônicos que norteiam e que informam a contemporaneidade, criando uma atmosfera de sensibilidades subversivas, uma associação de vontades libertárias – as visões poéticas desdobradas na escritura xamânica investem num exercício de afetos livres, numa ambiência cósmica, numa apreensão ao mesmo tempo mítica e crítica da realidade social, de diálogos e experiências desviantes da lógica do trabalho, do útil, do produtivo.

Roberto Piva estimula e põe em movimento em sua escritura xamânica energias que combatem as cadeias do “penico estreito da Lógica” e o mundo asséptico das racionalizações castradoras operadas pelos agentes cartesianos e as repressões sobre as práticas sexuais. Como registra no manifesto bules, bílis e bolas: “A vida não pode sucumbir no torniquete da Consciência”.

Assim como o xamã é alguém que ficou doente e, depois do contato com poderes espirituais, cósmicos e forças da natureza, conseguiu curar a si mesmo, podendo depois curar os outros sujeitos, Roberto Piva é um poeta que diluiu os limites entre linguagem e vida (e libera neste trânsito energias curativas), experimentando delícias míticas e sexuais trazidas para a expressão poética e reelaborando forças poéticas no torvelinho do mundo da vida – e atingido, deste modo, a plenitude das visões e consagração xamânica. Roberto Piva dissolve as tensões e frustrações que envolvem os sujeitos da espécie, indicando caminhos insuspeitados, mapas desenhados na atividade onírica e curativa da poesia visionária. Poderíamos escrever sobre a poética xamânica de Roberto Piva tudo de outra maneira, mas para isso é preciso deixar a visão chegar. Outra vez. E mastigar um cogumelo:

come o teu cogumelo
no coração do sagrado
fazendo sinais arcaicos
procura entre praias, montanhas
& mangues
a mutação das formas
sonha o mundo num só tempo
o cogumelo mostrara o caminho
só o predestinado fala
a lua lilás do cogumelo
levará ao rio das imagens
Sombras dançam neste Incêndio.

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