Memória, Dor e Claustro em “O dorso das nuvens pardas”, de Dylla Vicente

| |

Edner Morelli*

O livro de estreia de Dylla Vicente (Patuá, 2023) nos direciona já pelo título “O dorso das nuvens pardas” para um universo hipersensível. Por que digo isso? Há uma mistura entre a Imanência e o transcendente, com uma sugestão sinestésica, posto que o finaliza com a adjetivação cromática “pardas”. Esta não conota uma atmosfera semântica ligada à etnia, não é o propósito, mas sim a algo opaco, cinza e sem brilho por assim dizer. O termo “nuvens” nos aproxima ao poeticamente imaterial, traçando um espectro “onírico” de Memória. Já o vocábulo “dorso” nos induz à materialidade da vida, as costas que suportam o mundo, o sofrimento e a dor… “Teus ombros suportam o mundo / e ele não pesa mais que a mão de uma criança”. Incomparável Drummond. Regiões contíguas (dorsos e ombros) que sempre associamos à resiliência perante algo penoso. Esteticamente, a poesia e a prosa se misturam traçando uma voz curiosa em toda a obra: um desabafo poético-estético? O livro é dividido em três partes: 14 poemas em “Dedicatória Morta”. 8 poemas em “Sacro Constato” e 33 poemas em o “Léxico das Memórias”. Comecemos pela primeira parte: em “Dedicatória Morta”, obra e vida se confundem, mesmo que tudo se transforme em linguagem poética. Seu pai falecido e as reminiscências dolorosas de uma poeta? De um eu lírico transfigurado na poeta? O poema “Eulápide” (belo neologismo), inicia: “Sentei-me diante do túmulo”. E, em certa parte, proclama: “Choro as folhas de uma língua desconhecida”, seguindo: “Eu, palavra morta, morte sem nome”. E por que não lembrar Bandeira em seu “Poema de Finados”? (…) “Leva três rosas bem bonitas. / Ajoelha e reza uma oração. / Não pelo pai, mas pelo filho: o filho tem mais precisão”. Vida e linguagem se confundindo nos dois casos. Na segunda parte, “Sacro Constato”, a autora expõe sua vivência no convento: Memória, Dor, Indagações, buscas existenciais pervagam nessas prosas poéticas. Sugerimos um tom reflexivo: “Observo o mundo através dos vitrais deste convento: algumas vezes, sinto que sou obrigada a concordar com a discordância destes votos frágeis”. E a poeta continua, nessa segunda parte, uma busca de si? Para si? Ouçamos: “Fujo com aqueles que creem no estimado ciano do céu, com aqueles que creem no retorno das palavras, que, para mim, ainda é um mundo em significância…”. E a parte final e mais longa “O Léxico das Memórias”, Dylla nos apresenta dedicatórias poéticas aos que partiram e experiências estético-existenciais. Observemos um belo poema dedicado a Evandro Lima, sensíveis imagens nos entrelaçam: “Agora, uma lágrima pairou nesta imagem, borrei o tempo. Sinto pelo tempo. Há consequências que o mesmo instante zela pela ausência do espaço. Por outras significações, fará tua imagem o elo que um dia zelei por ti. Quero lembrar-me deste personagem; poderia descrever-te com mais adjetivos, mas prefiro bordar a memória do teu riso gentil e amável. Quando a tempestade reluz em tom de bonança, sempre resta o rascunho admirável das pessoas”. E, no fim desse breve introito, no curto poema AMOR, à moda de um Álvares de Azevedo, Dylla rasga sua mocidade poética expondo ácida visão sobre: “Meu coração é terra seca – sem raízes ou campos – / Insistente em plantar amores que não dão frutos”. Caro leitor, agora chegou sua vez…         


*Edner Morelli (1978), Poeta e Professor, natural de São Paulo. Formado em Letras (UniFAI – 2003). Especialista em Língua e Literatura (Universidade Metodista – SBC – 2006). Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC – SP – 2009), apresentou sua Dissertação sobre Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, unindo perspectivas literárias e filosóficas. Atua no magistério superior desde 2005. Possui publicado cinco livros de Poemas, a saber: Latência – Atemporal Editora – 2002. Hiato – Musa Rara/Terracota – 2012. Cenário – Kazuá – 2017. Líquido – Penalux – 2020. Cenas Nuas, em parceria com a fotógrafa Karol Dalecio – Kotter – 2022. Foi convidado pelo professor, poeta e crítico, Antônio Vicente de Pietroforte para participar do projeto de Escrita Criativa da USP, sendo convidado como Doutorando. Possui diversos artigos e resenhas publicados nos mais importantes portais e revistas de Literatura pelo Brasil. No prelo, o romance histórico “Cinza Chumbo”, em parceria com Sidnei Vares, com lançamento previsto para maio de 2024.  

Dylla Vicente é natural de Alagoas. É professora de Língua Portuguesa e Arte Educadora em Literatura. Tem prosa e poemas publicados e selecionados em revistas e antologias literárias, como Selo OffFlip, editora Absurtos, revista Ruído Manifesto, Littera7, entre outras. O Dorso das Nuvens Pardas é seu primeiro livro, publicado pela editora Patuá.

Deixe um comentário

error

Gostando da leitura? :) Compartilhe!