A Memória como Ensinamento

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Por Lucas Mendes Ferreira*

Olhamos para o mundo apenas uma vez na infância.
O resto é lembrança
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Louise Glück

 A memória tece um fio de águas  inesgotáveis em abundância, teor e fluidez  na poética de Mírian Freitas, que vem expandir e multiplicar o novo cenário da poesia brasileira em tempos tão estranhos  e tão comuns, tempos em que a condição humana grita nas redes sociais, desespera-se, desnuda-se, cotidianamente.

Neste seu quarto livro de poemas, já se sente de imediato o impacto no título: A memória é uma oficina de ossos, cuja  escrita  representa a abertura para  a liberdade de se construir um espaço de encontro, memória  e transformação, através da experiência ora pautada na altivez do cotidiano e nos desdobramentos afetivos;  ora na inquietude de vozes e emoções insubmissas,  impulsionadas por um lirismo que emerge da solidão, da solitude e da luz.  Nas palavras de Pedro Nava, a memória é inquieta, não se esgota, transcende e reage como uma maneira de sentir as oscilações do afeto, que é justamente o que põe o mundo à prova diante do desconhecido, daquilo que é passageiro e desata a imaginação. Nestes versos de Mírian, toda lembrança transmuta-se em presença; exemplo disso é  o poema “Escrever-te” em que a pulsão da memória  deságua na paisagem dentro e fora da atmosfera  íntima:    “a cicatriz reluz sobre a misteriosa memória,/o fôlego apagando-se no que te escrevo” e “Nas mãos, o  eco da tua voz no meu sangue”. Neste mesmo poema, a autora também metaforiza a memória como “abismo e naufrágio”,  permitindo-se enviesar pela vigília  ou pelo despertar da condição  facetária daquilo que tange a memória em sua multiplicidade, como os diferentes  rostos em uma multidão, e ainda,  como um corpo afetivo e fragmentado:  “Como pedaços de uma fotografia/espalhados na casa de nosso passado/a memória  é um abismo”.

As cinco seções que compõem esse livro dialogam entre si e transitam entre os fluxos e refluxos da linguagem que se irrompe no exercício da escrita que, por vezes, conclama, convulsiona, indaga a memória: “−onde enterrar a ossada da memória?/ Como diluir o crânio do passado?” Assim,  como flashes de  um pretérito  atemporal e revelador, as reminiscências fluem  em diferentes tons e formas, tal qual nas expressões: “casa íntima”, “vozes com pássaros”, “lábios de cera e fel”, “corpo mental” “aves mortas”, “ idioma de árvores feridas”.  Assim, a magia verbal se multiplica na legitimidade dos conflitos e emoções, na nostalgia de algo sublime, numa fatia de angústia imensurável que revela o sentimento de incompletude constante.

Em todas as cinco seções do livro intituladas, respectivamente, como “ Poemas de todas as horas”, “Corpos de luz”, “Do labirinto”, “Frutos de morder” e “Poemas sobre viagens”,  o leitor vai se deparar com a presença significativa da memória, de seu lastro, de sua marca tatuada no corpo afetivo, desde os momentos mais simples, como em “Despertar”,  em que a lembrança vem à superfície através de uma canção de Nat King Cole, que “entra pela janela do quarto” e  faz o “eco das flores” soar no horizonte; aos  sentimentos mais complexos, como em “Serpente”,  em que se percebe um certo furor e ressentimento pela traição da faxineira: “cadela que decifra o código da morada alheia/agora no escuro estás/com uma caixa de feridas/ no colo”.

Nessa gama de afetos, no dizer de Roland Barthes, a poética de Mírian Freitas, envereda-se, também, pelo discurso amoroso quando a seção “Corpos de luz” compõe  poemas  que a autora dedica a pessoas amigas, como também àqueles com quem, de uma forma ou de outra, ela tem uma identificação literária ou uma proximidade de caráter alteritário, como no belo poema  dedicado a Ocean Vuong; em um outro, a Maria Lúcia Alvim.  Constata-se que, na maioria deles, a dedicatória/homenagem já está no título: “A velhice de Maria Lúcia Alvim”, “Antônio”, “Falso retrato de Walt Whitman”. Muitas vezes, os ecos destes a quem ela homenageia, soam em seus versos como estrada e rio;  outras vezes como labirinto, fumaça, névoa.

Gabriela Llansol menciona que o recorte da intertextualidade é como uma lâmpada vibrante e quando se lê certos autores considerados companheiros ou irmãos, sentimo-nos vestidos pela energia deles; há uma troca de potência que existe entre os criadores, mesmo estando cada qual no seu caminho. Reflexo disso é a escolha das epígrafes, em que é nítida a preferência por certos autores como T.S. Eliot,  Jorge Luís Borges, Edmilson de Almeida Pereira, Paul Celan e outros, bem como o viés intertextual, observado no diálogo com outros poetas, como no caso dos versos finais de “Serpente”: quanto tempo demora o céu para levar um tiro na cabeça?, extraído de Viagem à demência dos pássaros, livro do poeta português contemporâneo, Alberto Pereira. Em “ O pão de centeio de Oscar Wilde”, também se destaca o  intertexto no último verso: “Sobre os homens que matam o que amam”, baseado em uma frase do  escritor irlandês,  em alusão ao que o autor narra, em seus cadernos, no cárcere de Reading − sobre a fome na prisão − e como passou a valorizar  até mesmo os farelos do pão que lhe era servido nas refeições. 

As facetas da memória se entrecruzam pelas cinco partes do livro, como janelas que se abrem para um infinito corredor, figuradas em lembranças, exílio, medo, amor, contemplação, luto, morte. Tudo ou quase tudo passa pela memória afetiva da autora, que se estende ao alcance da experiência do sentir, do ver, do alcançar algum lugar enquanto ainda é agora, remetendo-nos ao ritmo poético de Sylvia Plath e Hilda Hilst nos versos:  “Não há sorrisos dentro daqueles potes/de vidro”, “O seu coração é uma gaiola com pássaros” e “o baço doente no vulto da morte”.

Não se pode negar que nos poemas de A memória é uma oficina de ossos, encontra-se uma fração significativa das veias espirituais da autora,  como em “Desencarne”, “Sobre partir”, “Sobre doar” e  outros. Sob este viés, a percepção da realidade vem de um self  íntimo, talhado no “eu” mental e espiritual  que profecia: “Há um caminho esquecido/para os mortos chegarem/do outro lado/à cidade da abundância.” Nesse sentido, em “O retrato da impermanência”, os versos “Pergunto sem saber ao certo das entranhas/do que sou:/− sou isso?, lembram o teor espiritual  e ao mesmo tempo existencialista, de Laura Riding, em “Encarnações”: “ E olhando para baixo num degrau da memória, repita: Eu nunca fui isso”.

Na seção que encerra o livro, “Poemas sobre viagens” é um convite ao leitor a conhecer os semblantes de diversos lugares, cenários e paisagens por onde a poeta já viajou, configurando-se como memórias afetivas e não somente geográficas. Desde a ilha de Boipeba. na Bahia, a monastérios butaneses, os poemas parecem “ecos” da Terra, do Mundo, representados por uma voz que diz que “a viagem é um poema com pássaros”, dando-nos uma ideia de que “viajar” é autoconhecer-se, fazendo-nos crer que o movimento íntimo que esses deslocamentos nos traz, seja um dos propósitos fundamentais que muito beneficiam a nossa vida.  Interessante também notar, que as viagens a países da Ásia, como Índia e Butão, já lhe figuram como feitos virtuosos e aprendizado em busca das sementes espirituais, como no poema “Bodhgaya” (Índia), uma das cidades mais budistas do mundo: “Entre folhas secas e monges raros/o pensamento de nuvens e garças/toma e retoma a órbita do agora”.

Toda a recorrência a “ossos” principalmente nos poemas da primeira parte, lembra-nos da durabilidade destes, pois, metaforizados ou não, resistem por séculos, não se desfazem, são duráveis; talvez beirem à imortalidade, não sabemos. Por isso, encontramos nestes “ossos” uma expressão de potencial simbólico para traduzir aquilo que perpetua no homem: as experiências duradouras que não se findam. Ficam, porque permanecem, ainda que muitas vezes, aparentemente adormecidas ou mortas, estão enraizadas nos subterfúrgios da mente, dentro de caixas, gavetas, armários íntimos; sempre sobrevivem quando a lembrança vira palavra. Assim é a memória, essa “oficina de ossos”.      

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Lucas Mendes Ferreira é doutor em Estudos literários ( UFJF), professor na área de Letras no IFSUDESTE/SD. Atuou como professor de Português para estrangeiros de Língua Inglesa e Assessor de cultura luso-brasileira no Concordia College, Minossota, EUA.

1 comentário em “A Memória como Ensinamento”

  1. Vou te de ler este livro de Miriam Freitas, depois de ler está sua resenha que dialogou e trouxe a tona tantos elementos curiosos e citações ótimas sobre a memória.

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