Especial: Vozes do Punk Vol. 5 com Paula Guerra: as lutas têm canções

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por Aristides Oliveira e Demetrios Galvão

Paula Guerra é doutorada em sociologia pela Universidade do Porto. É Professora no Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP) e Investigadora Integrada no Instituto de Sociologia da mesma Universidade (IS-UP). Membro da Comissão Científica do Mestrado em Sociologia da Universidade do Porto, faz também parte de outros centros de investigação internacionais: Investigadora Associada no Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território (CEGOT); no CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar “Cultura, Espaço e Memória”; no Dinâmia’CET – IUL; Professora Associada Adjunta do Griffith Centre for Social and Cultural Research (GCSCR) na Austrália. É co-fundadora e co-coordenadora da Rede Todas As Artes, Rede Luso-Afro-Brasileira de Sociologia da Cultura e das Artes. Paula Guerra coordena e participa em vários projetos de pesquisa nacionais e internacionais no campo das culturas juvenis e da sociologia da arte e da cultura. É também orientadora de vários projetos de mestrado, doutorado e pós-doutorado nessas áreas temáticas. É membro do conselho editorial de várias revistas científicas nacionais e internacionais, assim como revisora científica de vários artigos e livros de âmbito internacional. É coordenadora e fundadora da Conferência KISMIF e co-fundadora e co-diretora da revista científica Todas as as Artes. Revista Lusófona de Arte e Cultura. É autora (com A. Bennett) do livro DIY Cultures and Underground Music Scenes (Oxford: Routledge, 2018), (com M. Dines, A. Gordon e R. Bestley) The Punk Reader. Research Transmissions from the Local and the Global (Bristol: Intellect, 2019), e (com P. Quintela) do livro Punk, Fanzines and DIY Cultures in a Global World. Fast, Furious and Xerox (Londres: Palgrave, 2020). Publicou também os livros Redefining art worlds in the late modernity (2016), More than loud (2015), On the road to the American underground (2015), As Palavras do Punk (2015), A Instável Leveza do Rock (2013).

É com ela que vamos conversar agora.

A Música/ Arrasta-me por vezes como um mar, a música!/ Rumo à minha estrela,

Sob o éter mais vasto ou um tecto de bruma,

Eu levanto a vela;/ Com o peito prà frente e os pulmões inchados/ Como rija tela,/ Escalo a crista das ondas logo amontoadas/ Que a noite me vela;/ Sinto vibrar em mim inúmeras paixões/ De uma nau sofrendo;

O vento, a tempestade e as suas convulsões/ Sobre o abismo imenso/ Embalam-me. Outras vezes é a calma, esse espelho

Do meu desespero! (Baudelaire, 1993: 185).

Como foi viver o pós-punk em Portugal?

Isso começou muito cedo na minha vida, por volta dos 15 anos. Eu vivi um período de transição. Transição etária e intelectual. Começei a devorar os livros de Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco e outros, também procurei coisas na Filosofia. Procurei respostas para algumas questões que me inquietavam nessa altura. Também foi nessa época que tive a oportunidade de conhecer alguém que estava bastante envolvido no mundo da música, Ele tinha uma banda e muitos discos e trazia consigo um universo de referências musicais e culturais com as quais eu me identificava. Criou em mim o desejo de me mover dentro daquela realidade.

Durante esse período de transição que aconteceu durante as «férias grandes», em que eu estava em Vale de Cambra, a paixão que eu tinha pela música redobrou a sua intensidade, Fruto do afastamento da cidade porque Vale de Cambra é uma zona mais rural. Este gosto veio a acentuar-se com o contacto que tive com o programa Som da Frente, de António Sérgio. Este programa depressa se tornou no meu mundo, tornou-se no mundo que me era permitido viver. O rádio enorme que eu utilizava para ouvir o programa que era emitido pela Rádio Comercial, trazia-me aquela voz profunda e emblemática que me levava para outras realidades.

Outros mundos. Ele relatava acontecimentos em que eu sonhava estar presente e trazia-me a música que eu queria ouvir e com a qual me identificava. António Sérgio foi uma mola que me levou a outras coisas, a procurar outras coisas. Eu comecei a sentir que não estava sozinha e foi a partir daí que encetei num percurso de aproximação ao estilo de vida característico do rock propriamente dito, o rock alternativo neste caso. Eu lembro-me de uma música do Echo and Bunnymen, “Never Stop” e eu achei aquilo tão forte, tão importante.

Isto é muito diferente, não tem nada a ver, nessa altura eu já tinha uma certa visão… Aquilo era outra coisa. Eu tinha uma família muito conservadora. Eu morava durante a semana próximo do Porto, andava num colégio religioso e tinha um pai completamente reacionário. Não era me atraía propriamente o punk, ele veio mais tarde. É estranho, mas foi no cruzamento com o pós-punk. Eu descobri primeiro o pós-punk e depois o punk. Descobri o Clash, Ramones, Sex Pistols nesse cruzamento. Algumas bandas pós-punk vinham muito a Lisboa e ouvia os programas no meu quarto sozinha.

Lembro-me de quando era adolescente e não só, até fazer a minha graduação, eu acompanhava e gostava muito de bandas e estava sempre a par de todas as questões que se passavam no rock alternativo em Portugal e no estrangeiro. Toda aquela linha de Manchester com os Joy Division e por aí fora. Eu também tinha amigos que tinham bandas, mas além de ser mulher, nos anos 80 era muito difícil as mulheres saírem para irem a Lisboa ou a outros locais. Eu acompanhava tudo pela rádio e foi através destas pessoas que fui conhecendo.

O primeiro concerto a que eu fui foi em 1985. Foi ali no Porto, num pavilhão, e eu tinha como deadline por parte do meu pai de chegar a casa à meia-noite, sendo que foi ele quem me levou de carro e que foi me buscar. Foi uma experiência chocante, porque eu lembro-me que, à meia-noite, ainda nada tinha acontecido e eu já tinha de ir embora. Por outro lado, ele também viu o ambiente em torno do pavilhão, e eu sei que isso foi ainda pior para aumentar a repressão e a proibição de sair à noite.

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Portugal era um país muito pequeno e muito fechado, ainda muito rural. Mas no Porto e em Lisboa havia uma camada de jovens com interesses em coisas diferentes, jovens que, de alguma maneira, tinham uma esperança no cosmopolitismo, na abertura da sociedade. Isso foi muito fomentado por um indivíduo que já morreu em 2009, que era um locutor de rádio, que se chamava António Sérgio.

Todos os dias eu ouvia o programa dele, ou à noite ou de tarde, seja lá quando fosse. Nem que fosse nas férias da aldeia, eu ouvia sempre aquilo e eu gravava o programa e tudo. Eu acho que o António Sérgio teve um papel muito importante, porque através daquele programa ele mostrou-nos tudo o que havia de novo a nível internacional. Portanto, todos os dias ele falava nos The Psychedelic Furs, nos Bauhaus, nos The Cure, tudo. Depois, em Lisboa, havia um lugar que era o Rock-Rendez Vous, que era onde iam as bandas, e ele também fazia crônicas/ reportagens, de modo que eu não estava lá, mas tinha a sensação de que estava.

Cultivei um gosto que me diferenciava na escola, as músicas, a forma de vestir. Tudo. Toda a coisa pós-punk foi vivida muito intensamente por mim, mesmo em termos de vestuário. Sempre foi assim até entrar na vida adulta e ativa. Usava baton preto, um pouco gótico. Depois vieram os [The] Smiths. Eles foram muito importantes também. Houve uma altura decisiva, aos 16/17 anos que eu tive uma noção de que eu tinha de ficar aqui [em casa dos meus pais, Portugal], se não eu não vou conseguir.

Eu tenho que ficar e morar com eles [familiares] para conseguir estudar. Eu posso fugir de casa, sair de casa, mas o que é que eu vou fazer? Eu tive medo. Eu tinha muita vontade de estudar, sempre tive. Assim, Fernando Pessoa, Filosofia, Kant, tudo aquilo começou a entrar em mim muito fortemente. Eu era a melhor aluna do colégio. Eu era a pessoa mais diferente da turma, mas era a melhor aluna. Uma contradição, portanto. Era um colégio só de meninas. Depois vem a sociologia. O meu destino escolar e tambem profissional. A escolha da sociologia como área afigorou-se para mim, ainda que de forma ingénua, como uma escolha que me iria permitir o acesso a um espaço de realização que em termos profissionais, me permitira coincidir vários mundos.

Hoje, mais do que nunca, vejo que foi a escolha acertada. Foi a sociologia e o meu percurso que, mais tarde com o doutorado e assim, que me fez pensar por que é que não vou estudar isto? E, portanto, lá fui. Lembro-me que, pela primeira vez, em 2005, fui a um festival com o intuito de perceber a influência da eletrônica no rock. Andei assim numas caminhadas. Vi pela primeira vez os Arcade Fire em Portugal, em 2005, no Festival Paredes de Coura. Aliás, eu tenho um amigo, colega e colaborador, que foi a primeira pessoa que começou a trabalhar comigo: a gente ia para os festivais e para todo o lado os dois.

Uma vez, já passado algum tempo, ele me disse que eu ainda ia ter saudades, e é verdade. Saudades daquele tempo, daquela liberdade de procurar as coisas, de fazer entrevistas, etnografia. Depois, foi uma bola de neve, isto é, eu comecei a contatar várias pessoas no Porto e em Lisboa e depois fui somando e somando, até ter, no fim, as 209 entrevistas. Aí eu tive de parar, porque, se não, não tinha fim. Então, foi por aí. Eu acho que foi importante porque foi começar do grau zero, mas também foi uma virada total, que eu acho que as pessoas só perceberam no dia em que eu defendi a tese.

Arquivo pessoal

Sempre o rock, o rock alternativo…

Por causa da globalização e do capitalismo. O sistema capitalista construiu outras facetas: econômica, política, etc e vai considerar também a questão cultural e somos totalmente permeados nisso, principalmente na questão da língua, que é a dominação absoluta. O que é estrangeiro é que é bom. Isso se passa também com os brasileiros. É interessante a música brasileira em Portugal.

Como é a recepção lá?

Total. Total. Eu não gosto, desculpem, daquela música brasileira que passa… Eu só gosto de Caetano, Gil, Elis Regina… Eu não gosto de nada dos outros, mas as outras pessoas amam o Chico Buarque, amam não sei o quê. Porque? Porque é uma dominação. Vocês são 200 milhões, nós somos 9 milhões. É super diferente. Essa hegemonia capitalista explica o domínio anglo saxônico.

Muitas bandas punks dos anos 90 cantavam em inglês. Não sei se aqui vocês sentem o mesmo, porque vocês são mais fortes identitariamente. Os vossos filmes são mais famosos, a vossas coisas são mais importantes. Nós temos a Amália, o Fado, não é? Portanto, a nossa fuga é se agarrar aos tentáculos do polvo capitalista. E acho que isso aconteceu. Sinceramente. Eu acho que tem essa questão. Esse domínio, do ponto de vista do sistema econômico e financeiro em vários níveis em todo mundo aconteceu do ponto de vista cultural e artístico.

Tu vês o punk chinês e está lá tudo, o domínio total. Tem um capítulo meu que comparo o punk chinês com o português e há muitas proximidades. São coisas contra hegemônicas. No Brasil vocês conseguem sobreviver [ao inglês] e impor-se. As vossas produções culturais e artísticas conseguem uma visibilidade mundial. Portugal é outra coisa, Espanha é outra coisa, Itália é outra coisa, França é outra coisa. Tem que se arranjar outro paradigma (em relação ao punk inglês) e o Brasil é outra coisa. Mesmo que os punks de São Paulo sejam muito importantes e os mais próximos dos ingleses do que nós (portugueses), não tem nada a ver. Houve um paradigma que foi criado para o mundo anglo saxônico e que é claramente inadequado para explicar o que se passa esses contextos. A epistemologia do Sul: é preciso deixar de lado a lógica do dominante. É preciso buscar uma epistemologia para explicar o que se passa conosco! É isso que tento fazer na minha investigação.

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Existe uma estrutura que oculta algumas vozes. E o punk chinês? Africano? Eles não chegam até a gente?

Mas há um surgimento de algumas coisas do hardcore/punk de luta desses novos movimentos sociais na Grécia, Espanha, Itália e em Portugal. Há um espaço pra isso, percebes? Há um espaço dessa emergência, da crise, da austeridade, tudo isso. As lutas têm canções. As lutas têm uma banda sonora. No Marrocos tem uma cena punk incrível. Não bem punk. Eu estou sempre a atentar essas coisinhas pequeninas, porque eu sou muito curiosa: eu tento sempre estudar essa contra hegemonia. Essa contra tendência, na busca de um paradigma alternativo.

Paula: Aristides, quantos anos você tem?

Aristides: 33.

Paula: Viveu a década de 90?

Aristides: Vivi o fim do K7 e o auge do CD (risos).

Aristides Oliveira (Acrobata) e Paula Guerra
Foto de Ana Cristina

Voltando a falar do Echo and Bunnymen…

Em 2005 eles vieram a Portugal e eu já estava fazendo meu doutorado e foi horrível!

Você tinha uma imagem…

E o mesmo acontece com o Peter Murphy (ex-Bauhaus). Eu já ouvi situações muito complexas na carreira solo e eu prefiro nunca ter visto.

Você se decepcionou com o quê?

Com a coisa toda, com o corpo dele, com tudo.

O tempo passa… (risos).

Mas não pode passar… É melhor não ver.

Você não acha que essas bandas-referência (The Cure, Depeche Mode, Echo and Bunnymen) tornaram-se caricaturas de si mesmo?

Acho! Os únicos que não são caricatura de si mesmo são os Sex Pistols, porque eles assumem isso claramente. Eu vi um show em 2008 e continua tudo igual. Um velho no palco, a voz é igual, mas ele assume aquilo tudo. Puramente numa lógica de ganhar dinheiro. Agora, os outros… Muito complicado…

O Robert Smith (The Cure) é um exemplo disso.

Ah isso aí é impossível! Eu não quero ver mais!

Eles vão ser jovens sempre. E custa muito não ver isso.

Eu já estou saturada daquilo (gótico). Aquela coisa preta, aquilo já não dá pra mim. Não quero aquilo. Não me representa. Não ocupa o meu mundo. Aquilo não acompanha as coisas. O que eu gosto hoje? LCD Soundsystem! A gente tem que ser outra coisa. A gente tem que se reinventar, fazer outras coisas. Não bater na mesma tecla. Não pode ser o mesmo, senão é uma caricatura.

O The Cure…

Não fale! É horrível! Não dá! Não tem força. Não há nada. Eles se venderam à indústria. Se venderam ao sistema por que estão a viver dos sucessos passados. Eles não estão trazendo nada de novo.

Fale um pouco sobre o KISMIF International Conference ‘Keep It Simple, Make It Fast.

A essa altura, estava aberto um concurso para a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, para expor projetos. A partir da defesa da tese, eu tive um mês e submeti um projeto sobre o punk, cuja lógica foi exatamente a mesma da tese: teórica e empírica. E, então, fundou-se o KISMIF, que é o Keep It Simple, Make It Fast. Foi nessa altura que eu convidei o Andy Bennett para participar e a toda aquela minha equipe, e nós estamos aí.

É como disse, eu não parei, isto é uma “bola de neve”. Soube que tinha sido objeto de atribuição de financiamento por parte da FCT, em setembro ou outubro desse ano. O projeto arrancou em 2012 e tem sido uma autêntica “bola de neve”. Isto é, há uma continuidade da lógica metodológica da tese. A lógica é a mesma, até as histórias de vida também estão contempladas, e também há ali um intuito de fazer uma plataforma de investigação. Isto é, termos uma linha de investigação que diga que isto é o KISMIF. O que é que neste momento nós temos? Neste momento, nós somos uma entidade, entre aspas, mundialmente conhecida. Como é que surgiu o congresso? No âmbito do KISMIF, nós tínhamos de fazer congressos, e, então, quando estive na Austrália, em 2013, eu e o Andy Bennett conversamos, e ele disse para fazermos uma conferência. Quanto à temática, ele queria falar de qualquer coisa sobre o punk, mas eu disse que achava melhor sermos mais abrangentes. Então, surgiu-nos o Underground Music Scenes and Do It Yourself Cultures, e assim ficou. Eu cheguei, fizemos o call e foi uma surpresa absoluta. Nós nunca pensamos que íamos ter este impacto. Nós tivemos 200 pessoas de 33 países diferentes. Para nós, foi uma surpresa muito grande.

Você acha que existe preguiça intelectual na Universidade?

Isso daria outra entrevista, o dia inteiro.

A caretice acadêmica é forte por onde você circula?

É terrível, brutal em vários níveis. Custou muito estar aqui. Foi uma luta. Sempre uma luta. Uma luta total. Uma luta para me impor como mulher, uma luta para me impor como uma pessoa que se veste diferente, uma luta para uma pessoa que não é formal, que mostra a cara e não é autoritária.

Continuo assim todos os dias. Às vezes noto que eles (alunos/alunas) gostam do que mais os oprime. Eu acho que é geral. Eu tento combater isso mostrando o outro lado. Há momentos muito críticos, muito críticos. Aqui no Brasil também está muito presente. Hierarquias. Sob um pano de fundo que “não é” hierarquia. “Somos todos cool”, mas há uma hierarquia fortíssima. Oportunismo. Eu tenho visto ao longo da minha vida. Nessas aulas, eu me deparo, de vez em quando, com coisas muito feias. Dentro da academia são os melhores autocratas, são os melhores machistas, só poder, poder e poder para arrebentar com o poder!

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Voltando ao que me perguntaste. O fato de ter um objeto mais ilegítimo leva à necessidade de lutar muito para conseguir, de alguma maneira, dizer que isto é importante, para dizer que a juventude do pós-guerra, e não só, vive sob o auspício do rock ‘n’ roll. Portanto, é impossível que as pessoas não estudem o rock ‘n’ roll.

O que é que as pessoas fazem nos tempos livres? O que é que as pessoas consomem? Tem ou não tem a ver com o rock ‘n’ roll? O rock ‘n’ roll não é imagem? O consumo, a roupa etc., está tudo relacionado. Portanto, isto é muito importante de se dizer, mas, ou por desconhecimento, ou porque somos herdeiros de um país fechado e ditatorial, em que as pessoas de fato não tinham estes consumos, é muito difícil para as pessoas aceitarem, isto do ponto de vista de ser um objeto tão legítimo como estudar recursos humanos, por exemplo. E é. Se nós formos pensar em toda a história, tudo mudou a partir do Elvis, porque foi a massificação do consumo total. Era preciso ter a música do Elvis, vestir-se igual a ele, ter o cabelo igual a ele e ter as namoradas como ele tinha…

Arquivo pessoal.

O doutorado foi crucial? Quis abarcar essa instável leveza do rock?

Como disse, podemos dizer que foi mais ou menos por volta de 2005. Até essa altura, eu tinha trabalhado com a área da exclusão social, muito vocacionada para a exclusão social e para as políticas sociais. Cheguei a fazer alguns trabalhos. Por exemplo, o meu mestrado foi feito num bairro social muito grande no Porto, que se chama Bairro do Cerco do Porto. Nessa altura, era um domínio de que eu também gostava, em que se pese que, no final do trabalho de campo, eu tive um sentimento de impotência perante a realidade eu não conseguia, de maneira alguma, mudá-la ou fazer com que muitas pessoas vivessem melhor. Isso causa um certo cansaço e algum desespero. Porque parece que não há uma luz ao fundo do túnel. Portanto, há ali a reprodução de uma condição social de dominação, que depois se perpetua ao nível da escola, ao nível do bairro, ao nível da habitação, ao nível dos estudos, ao nível de tudo.

Pronto, essas coisas me levavam a pensar muito sobre o que é que eu andava fazendo aqui e o que é que eu poderia fazer. Eu não nego que, nessa altura, sentia uma certa impotência no sentido da mudança social, que é necessária de ser feita. Depois, veio a questão do doutorado e eu comecei a pensar o que é que eu queria fazer.

Ou ia pela sociologia urbana, pela sociologia da cidade e continuava nessa mesma abordagem, muito inspirada pelos trabalhos de Loïc Wacquant, ou então partia do zero. No caso, foi totalmente do zero. Por quê? Porque na formação que nós temos aqui na Universidade, onde eu me formei, quer seja a licenciatura, quer seja o mestrado ou no doutorado, não há um enfoque a todo o conjunto de teorias que deriva dos cultural studies. Eu penso que isso acontece na generalidade dos cursos de sociologia europeus, muito particularmente francófonos. Por um lado, eu sentia que havia uma falta.

Então, pensei que tinha de ser uma coisa de que eu, de fato, gostasse muito porque, se não, ia ser muito difícil de levar, porque há momentos de muita exigência, de paciência, perseverança, disciplina, tudo isso. Assim, lembrei-me de que, quando era adolescente, e não só, até fazer a graduação, eu gostava muito de bandas, acompanhava todas as questões que se passavam no que diz respeito ao rock alternativo, quer seja em Portugal, quer seja no estrangeiro, mais na linha do indie rock e de toda aquela linha de Manchester, Joy Division e por aí fora.

E eu tinha amigos que tinham bandas. Isto é, não obstante, eu ser uma mulher e, nos anos 1980, ser muito difícil para as mulheres saírem, irem a Lisboa e etc., eu acompanhava tudo através da rádio e através destas pessoas que eu fui conhecendo e que tinham bandas, que tinham coisas e que iam ali ou acolá, a concertos etc. Foi partir do zero, tive de fazer leituras da sociologia, da antropologia e dos cultural studies do mundo anglo-saxônico, que eu não conhecia nada. Comecei a desbravar Simon Frith, Andy Bennett e todos esses autores.

Arquivo pessoal

Sou um puto da rua, no esgoto da cidade, à procura dos rostos por detrás das máscaras. Sou um puto da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras, fui um puto da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras, julgo ter sido um puto da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras, sonho ter sido um puto da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras, fomos putos da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras, ainda seremos no esgoto da cidade putos da rua à procura dos rostos por detrás das máscaras?, continuo a ser um puto da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras, ainda tenho comigo um puto da rua, procurando o meu rosto por detrás da máscara, somos máscaras que só os putos da rua podem ver como rostos, saí de puto da rua no esgoto da cidade para ficar como máscara na cidade como esgoto, voltámos ao esgoto da cidade precisando de tornar a ser putos da rua para preservar os rostos por detrás das máscaras, sou enquanto fui um puto da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras, sou, ouçam-me, vejam-me, sou, obrigo-vos a ouvir-me porque falo alto, obrigo-vos a ver-me porque vos choco, sou, sou!, sou? Um puto da rua no esgoto da cidade à procura dos rostos por detrás das máscaras. (Silva & Guerra, 2015: 230-231)

Agradecemos a Ana Cristina por possibilitar a concretização deste encontro com Paula Guerra.

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