4 Poemas de Blenda Santos

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Blenda Santos é poeta, nascida e criada no Santos Dumont, bairro periférico de Aracaju, capital de Sergipe. Iniciou o seu trabalho com a literatura em 2016 e desde então, circula por diversos espaços, utilizando a união da poesia falada e da performance corporal como ferramenta de reconstrução de narrativas do povo preto e periférico. Em 2018, venceu o Slam Sergipe e foi a representante do estado no Campeonato Brasileiro de Poesia Falada, o Slam BR.


Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões

Escrevo para criar outras imagens de você deitado
Para fazer com as próprias mãos justiça
E lembrar que aqui não se pode temer, nem se pode esquecer
Descarte de escravos no mar mudou o hábito dos tubarões
Meu amor, não esqueça de não acordar com uma bala perdida nas costas
Eu tenho pressa de voltar, de percorrer na cabeça o caminho de casa
Se a periferia é extensão de quilombo, o futuro só pode ser ancestral
Estamos à beira do precipício que é sonhar
Mas ter medo de acordar, nunca foi uma opção para olhos como os nossos
Minha boca aberta é arma
É reparação histórica
É contar a verdadeira história por eles mal contada
Como o amor para quem teve seus filhos arrancados dos braços
Para quem presenciou seus companheiros apanhando sem razão
Branco até aguenta preto resistindo
Mas nunca revidando
É inadmissível que todas as dores do mundo
Seja a única coisa que eu possa falar


Versos também são escritos dentro do ônibus

Veja, como escrevo feito quem tem pressa de voltar
nunca quis nada que não fosse tão ligeiro
não me peça para ter calma
não me peça para seguir as suas normas poéticas
a verdade é que isso nunca me interessou
lembrei de um outro homem
falando sobre esse negócio não pertencer a um tipo especial de pessoa
por isso
que eu também sou poeta. mas a minha mãe não sabe ler
e os homens não sabem de quase nada
pois foi o que faltou nas aulas de português
pois foi o que não falou aquele professor que nos pedia silêncio o tempo inteiro]
eu odeio a calma, o silêncio e o capítulo do livro que traz um texto sobre o exílio no
beleléu daquele cantor de merda que distribui flores
versos também são escritos dentro do ônibus
um poema não é só como quem começa e mesmo perdendo consegue lembrar de
alguma parte]
não se pode falar de amor de um outro jeito
mas os meninos brancos esqueceram
não ouço o canto dos pássaros
não vejo árvores bonitas
não me banho em mares tão azuis
e é exatamente por isso que eu também sou poeta


Hoje não é dia de branco

Ninguém diria ser fútil a biografia de um braço
Escrever a história de seus movimentos mecânicos
Irrecuperáveis, perdidos no esquecimento
Veteranos de guerra imaginam dores que ainda sentem
Estralar de dedos, salva de palmas, segurar na sua mão
Imagino que não me ficaria bem fantasiar a reconquista de minha cabeça
Pelos sobreviventes lisos da base da nuca
Alisaram o meu cabelo pela primeira vez aos oito anos
Não houve o que dizer daquilo que não fosse um problema
Imagine a dor de escrever essa frase num poema
Mas eu não posso falar de amor
Amor é privilégio
Sou das que vieram incomodar o sono injusto da casa grande
Pois a partir de agora, decreto
Hoje não é dia de branco


Quando não se provoca barulho algum

possivelmente eu dou risada de quem prefere as palavras que nunca li
procuro sinônimos para não repeti-las
contrario alguma coisa da minha própria cabeça
eu disse: pedro, já pensou se você gaguejar?
o meu tio tentou enfiar a língua na minha garganta
eu fui correndo contar ao meu pai
ele não fez nada
e eu nunca imaginei pedro gaguejando
dia desses dei de chorar como tem sido desde o primeiro contra-ataque inoperante
quando não se provoca barulho algum
ninguém manda aceitar porque dói menos mas no final de até agora
nunca mais parou de doer
e ainda assim, mesmo sem querer, eu insisto em dizer as mesmas palavras
falar sobre tangerinas ao invés da história que todos esperam que eu conte
falar de novo, repetir até me sentir calma demais e exatamente por isso cansar
quase como acreditar em movimentos contínuos
quase como pertencer a uma vanguarda de qualquer coisa
quase como meninas brancas plantando bananeira sem calcinha
o meu medo da raiva nunca me protegeu de nada

1 comentário em “4 Poemas de Blenda Santos”

  1. Ah estas leituras!!! Nos trazem toda a ancestralidade, nos trazem a vida e as vivências, é a partir destas que seguimos construindo nosso cotidiano a partir dos nossos olhares e nossas vivências. Gratidão

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