5 Poemas de Amanda Vital

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Amanda Vital (Ipatinga/MG, 1995) é editora-adjunta da revista Mallarmargens. Bacharel em Estudos Literários pela UFMG, atualmente cursa Mestrado em Edição de Texto pela Universidade Nova de Lisboa. Autora dos livros Lux (Penalux, 2015) e Passagem (Patuá, 2018). Tem poemas e traduções publicados em revistas, blogs e jornais – virtuais e impressos – como Germina, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Equimoses, Zona da Palavra, Jornal RelevO e Revista Caliban. Também participou de antologias como Ventre Urbano (Penalux, 2016) e 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015). Foi curadora da 4ª edição da antologia Carnavalhame.


broto

em 1965 joão cabral de melo neto dizia que a poesia
era como catar grãos de feijão que boiavam na água
nos tempos de vó não se catava feijão assim: sempre
era encher três mãos dentro do saco de juta despejar
tudo em cima da mesa e dedilhando pedra por pedra
milho por milho fazia um pequeno monte no colo em
cima do vestido para levantar a barra da saia jogar no
lixo lavar o que sobrou na bica ao lado das pastagens
aproveitar completar a panela para deixar cozinhando
ao redor do fogão as meninas aprendiam pelos olhos
medir a água contar o tempo macerar o alho com sal
e refogar com banha de porco o feijão da vó era feito
de um silêncio mineiro de fazer qualquer poesia ficar
só espiando na ponta dos pés pela janela dos fundos


renda

morar na cabeça dos outros: essa tarefa exaustiva
ser montada desmontada e me aguentar sem partir
os nervos e as costuras seguir assim reboco intacto
parede que parece nunca ter visto furadeira na vida
adélia prado diz que mulher é desdobrável e eu sou
mais uma dessas criaturas de polarização oscilante
mudando de assento ou de sentença a cada cabeça
que me acolha enquanto essa inquilina mal de paga
aceito aquela casa de costas para o sol por também
ser eu mesma uma casa assim de costas para o sol
e insisto em não fechar as janelas nem as persianas
porque eu e todas de mim ainda esperamos por nós
para avançarmos lúcidas inteiras até o lobo frontal


escamas

não me aguento com essa gente vai-não-vai:
não diz que gosta de você nem que desgosta
só olha de canto de olho um soslaio discreto
tão sorrateiro das lagartixas e dos camaleões
não te cospe não te sorri é uma gente quieta
a passar assim sem gracinha pela nossa vida
esses que andam segurando a língua por trás
do alvéolo no céu da boca para não se soltar
engolem o choro das próprias farpas furando
as gengivas fazem por discrição ou elegância
esses com abraços de costas frias desanimam
qualquer mão a sentir-lhes as cartilagens uma
umidade reptiliana estranha à pele talvez essa
pose seja mesmo de quem não está à vontade
e quer voltar para casa para o seu passatempo
de continuar comendo as moscas das paredes


curral del rey

são cinco e quarenta e sete da tarde na capital
mineira e uma moça come pães de queijo frios
borrachudos na única padaria a um raio de três
quilômetros do escritório um senhor passeia o
sossego dos cães e pergunta a um rosto amigo
se está tudo joia como está a ana e os meninos
o homem oferece sua cerveja e o riso que deixa
reservado para momentos como esse uma moto
costura uma fileira de carros parados as buzinas
ecoam os latidos dos cães ecoam ecoa a estação
de rádio preferida dos taxistas de janelas abertas
enquanto a tarde em rosa e laranja tenta suprir a
falta do mar: as montanhas escondem albatrozes


senda

a senhorinha da casa da frente já não se aguenta mais
sentada na sala à janela os dias inteiros semanas a fio
dá para sentir sua angústia no vidro embaçado respira
fazendo um círculo de calor que parece nunca dissipar
às vezes voltamos pela calçada no lado oposto de casa
e nos assustamos com seu reflexo súbito ali à meia-luz
é tarde e a velha às escuras afixada nessa condensação
com o tempo são só uma matéria sólido-líquido-gasosa
imagino ela daqui a alguns meses ouvindo os ruídos de
persianas dos vizinhos um estrondo quase monotônico
se assusta num saltinho da cadeira e endireita os óculos
desliga a televisão no meio da fala do primeiro ministro
tira o monitor da tomada tudo em uma levantada única
força os puxadores das janelas com coragem de menina
e ainda feito menina cumprimenta o mundo novamente
a velha pode ir comprar sozinha pão leite queijo banana
pode ser mais uma entre tantas arrastando a sua cadeira
à porta de casa sem máscara sem medo e sem vergonha
contando suas fofocas acumuladas antes que se esqueça
mesmo que certas coisas não esquecemos como fazê-las

4 comentários em “5 Poemas de Amanda Vital”

  1. Amanda Vital, uma dessas coisas importantes do meu passado recente foi ter estado contigo numa mesa de bar. Orgulho de você, querida! A maior poeta da atualidade.

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