Flávia Andrade nasceu em São Paulo e é apaixonada pelas noites da cidade. Psicóloga, psicanalista e Mestre em Filosofia de formação, sente-se atraída desde cedo por arte, teatro e poesias. Quer colocar em verso aquilo que não pode ser racionalizado pelas vias formas do conhecimento e da compreensão humana. Faz da escrita seu caro divã. Não entende Hilda Hilst, Conceição Evaristo e Clarice Lispector com a razão, mas com os sentidos. Sente-se contemplada pelos sentimentos em letra dos grandes poetas e acredita que escrever poemas é condição de possibilidade da própria vida. É autora do livro “A Cidade do tempo cão e outros poemas de fissuras”, publicado pela Editora Patuá.
Temporal
Hoje explode o caos da sua produção perversa
das águas que fingiu não perceber importância
enquanto achava que as dominava
do alto de sua megalomania, centro de seu umbigo/universo
Não se acostumou a espelhar vulnerabilidade
Mas hoje escorre água, morro e lama
da tua inabilidade em lidar com o natural
dos teus pés de concreto que pisam água
hoje estamos rachaduras e desmoronamentos dos teus templos
Como se tivesse aprendido a chorar
você pinta de cinza, sua cor, o céu
e cospe as entranhas da sua impotência
É quando chove que você se encolhe, pueril
Mostra as suas indigências de pedra
(e as nossas vivas, humanas)
hoje estamos afogadas em mau tempo
hoje o clima de pouca luz reflete o tempo da pouca esperança
hoje estamos nuvem, umidade e dor
Cidade do tempo cão
Permuta (Série desejo)
um rosto que irrompe a madrugada
memórias do corpo invasivas
Mas teu escândalo vem
aquela brecha aberta fere
a sua memória dolorida
O não sido que me era obrigatório
teu dentro é meu óbvio desejo fundo
o mais desejo
abri-te eu
Por outros poros
teria percorrido de volta todo aquele caminho a pé
E o da sua sala até seu quarto
decorar passos e textura do chão
e da subida da sua cama
o caminho leve da sua mão dentro da minha blusa naquela noite fria
trajeto óbvio que foi e continua sendo
aquele que te empurra fundo
pra dentro de um espaço meu
que tem o espaço guardado seu
que ainda farei troca
me darei em permuta
Pra um caminho que desde rosa
Te é e te espera
a única dor dessa pele nesse afeto que vem
Vai ser a da tua volta
Biohazard
Vês?
agora as únicas torres de seu
Corpo que valem
são aquelas nas quais o oxigênio vem de um balão
Precificou tanto tua luz e teus templos
Fez escárnio das periféricas extremidades que quis esquecer
Te compõem
não há mais valor naquilo que vendeu
Não se compram hoje suas ilusões
seu ar está negado – nem de carbono mais você cega
teu olhar de cima nada pôde
contra a animalidade que viria
Sobre-viver com você na iminência do risco biológico
fechar narinas e subestimar tua luxúria
cadê tua insônia?
Cidade do tempo cão
Estrada de São Carlos
Eu não sei quantas notas
são dedilhadas na introdução desse violão que te musicou em mim
Desde aquela estrada verde e clara
Uma solidão já ia com saudade do que encontraria no destino
Como se já pressentisse sua presença estranha
ia leve e dona do assento único naquele mundo móvel
momentâneo
Assento único porque
assentada e confortada em mim
Permaneci
Até me afastar na volta
Que me distanciou do seu ar
Daquele céu rosa gelado
do teu casaco planejado
Antes ainda
teu olhar desinteressado, teu semblante fora
a descrição corpórea do que é o estranhamento
o incômodo o aperto
O escândalo do preto da tua roupa com o colorido do teu espírito
melancólico boêmio
a tua facilidade restrita de se dar no mundo
A calma que ambientou em mim
o susto da semelhança inconciliavel dos nossos destinos
Uma estrada ensolarada dividindo nosso peito
o medo imperceptível de ir contigo
Eu disfarcei de cuidado
e se você me quis com a intensidade que eu quis voltar
É a dúvida que motiva minha insônia
E todo meu pranto vem com calor desejo e afeto
Toda nota desse violão é sua
Porque eu te dei
E toda a melodia desse timbre rouco tem seu nome
Ainda que não seja tua
a garganta que canta
Eu quero te entregar esses versos
enquanto rimos entregues ao céu rosa da tua cidade
Com todas as janelas abertas
quando enfim
você souber
que essa é sua trilha sonora
e que é em mim que você toca
Voz e violão
Desde que cruzei
A estrada de São Carlos
Poemas do Livro “A Cidade do Tempo Cão e Outros Poemas de Fissuras” – Ed. Patuá
Cidade do Tempo Cão
O entardecer revela tua personalidade
E tua provocação
Borderline
Teus movimentos diurnos corridos e corriqueiros
Enlouquecedores e donos do tempo
Senhora do tempo e da masmorra
Da rotina desregulada e irregular
Provocativa e silenciadora
e tuas noites
Liberdades condicionadas
Possibilidades megalomaníacas
Contigo se tem romance bandido
Sexo selvagem com tua luxúria noturna
Com tua mania de grandeza
Muito templo
Pouco faraó
amanhece e você é só sadismo
Nos bate na cara
Segue a ambivalência
Amor e ódio
De dia te quero longe
De noite lembro porque não te deixo
Cidade do tempo cão
Carta ao Cansaço
Quis escrever uma carta endereçada ao cansaço
ao sentido da dor do poeta fingido
o divã do verso nem sempre dá conta
porque a letra da angustia
certas vezes não encontra significante
Já que é assim
ficam os versos sensitivos do Leonard Cohen, sempre lacrimoso
falando por mim
Lembro do ciúmes de versos que me leram e não saíram dos meus dedos
Quis escrever para a fadiga
acreditar nos dotes de renascimento
da fênix que todo feminino conhece na carne
Mas não existe crença para aquele que chora
a única realidade
É o sal molhado da lágrima
a contração
o suspiro involuntário
o desgoverno
a tremedeira
o susto consigo
a pele própria estranha
quis escrever para a angustia porque a carta no correio
faria parecer fora
Que não me pertence o músculo que dói
mas é impossível a concomitância
entre destinatário e remetente
quis me cobrir
Mas a dor é o que nos iguala
E a poesia nos deixa nus