7 Poemas de Gabriele Rosa

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Gabriele Rosa (Rio de Janeiro, 1988), historiadora e dramaturga de processos, assina o dramaturgismo da peça Memórias de uma Manicure (Bonecas Quebradas Teatro, 2023 – Projeto contemplado no Edital Eletrobrás 2021). Autora de afetos postiços (Ofícios Terrestres Edições, 2023), Dias medidos em xícaras de café (Editora Urutau, 2023), Não consigo me desvencilhar desse óbito (Editora Primata, 2023), entre outros livros. Foi aluna do CLIPE 2023 (Curso Livre de Preparação de Escritores) do Museu Casa das Rosas. Investiga procedimentos criativos encruzilhados e de deriva, transversais à literatura, história e artes da cena.


GOELA ABAIXO

esqueci de cuspir. acordei sem vista para o mar. concreta, deserta, transtornada. largaram meu nome na lavanderia. sirius, vega, capella, pólux, castor, polaris, algol. lembra? cabeça feita de serpentes, matéria oca. gasosa. berrar, tremer, grunhir, correr. ah! correr pra lugar nenhum é a melhor parte, eles disseram. contagiante. queria gostar menos de gente. acreditar que o normal existe. o normal existe? os usuários caminham, caminham, caminham. tudo é branco, cinza, verde-ruína e destino. minha vesícula está azeda e não sei nadar. eles desejam me abrir, rasgar minha carne anoitecida. não gostam da noite. um, dois, três, quatro. meu coração escorreu por entre as coxas no verão de 82. uma enseada vermelho-sujo-natimorto. vez ou outra meus seios lacrimejam. dormir dói. quando eles apagam as luzes tenho medo de ficar presa do lado de fora da minha cabeça. despalavrada: louca. quarto lagarta, leito-único. onze, doze, quinze, dezoito. uma ficha, três minutos. alô, mãe? sirene alta, vozes embaçadas, telefone fora do gancho, pendurado. cronômetro e voltímetro calibrados. 80 volts. gritos, grilos, grunhidos. 150 volts. silêncio. quem me criou? vinte e cinco, trinta e dois, quarenta! te peguei, tá com você.


BIÓPSIA

 

as notícias boas não chegam em laudos lacrados levados de um lado para o outro por olhares que engolem bisturis e cafés requentados. quarta-feira, dia de Mercúrio. carregar ruínas no peito, esquecer de tragar cigarros matutinos. mamilo deturpado. vestidos soltos floridos. exausta de usar casacos no inverno carioca, com mínimas de vinte graus. as linhas das mãos se perdem quando lavamos louças intermináveis. couve, bertalha, agrião. Vó, não vai ver a novela hoje? setenta e nove, sem históricos familiares. carcinoma infiltrante da mama de tipo não especial grau nuclear três. susto. a existência da vovó será consumada no meu útero desabitado. deveria ter comprado o pacote de congelamento de óvulos no mês passado? exame preventivo ou a médica tentando me convencer a ter os filhos que nunca desejei pra ganhar um dinheirinho extra ou minha Vó permanecendo. passada, trinta e cinco – ela disse. o sorrisinho estalando no canto da boca. trompas de falópio constrangidas. mexida, trinta e cinco.  você me desculpa? almocei nhoque da fortuna. as avós não morrem nas canções de ninar. papila, fáscia, aréola. o crescimento espontâneo de neoplasias malignas não apareciam nas cartas natais do nosso jardim de rosas táteis. bússola absurda. registros em áudio, fotografias sem bordas, monóculos de estilhaços. meu próximo livro? guardei as lágrimas debaixo das unhas. retinas vacilantes, tuas falanges amornadas. sorte que o Tarot não termina no arcano XIII.


PEQUENA

1.
toalha. amamentada no bico de crochê. o cordão estica do ventre aos dias. laço infinito. danço na agulha das horas. no passador marrom manchado, o café amargo. três gotas de angústia. cinco colheres de fé. reflexos. vestido-espelho. vermelho seco, oco, torto. educação. etiqueta. submissão, por que não? eu não sou ela. fraturas. pele costurada em ponto baixo, baixíssimo. carrego comigo todas as que vieram antes. devorada. não engulo mais. fluida, lenço, baço. qual engasgo te semeia?

2.
aprendi bordado quando
pequena observando
minha vó tecer as
palavras que engolia
sozinha solar saudade
era comum esbarrar com a voz dela
nos panos de prato

3.
a casa feita de quartos
em todo canto uma cabeceira
tenho poucos móveis e não conheço os vizinhos
e as paredes não param de me observar

4.
um curto
por favor


LODO

meu coração é um curral em que cabem muitas bestas. pantanoso. medula cosida com pontos largos. engasgo doses homeopáticas de orgasmos, que não tive. no espelho, avessos inconfessáveis. nebulosa dolorida, afetos palpáveis. coxas preambulam língua dormente. áspera, úmida, árdua. amanheço entre vértebras, amornada em silêncios glicosados. canudo, plástico, copo. vertigem. corpo domado nas frestas, margeado entre dentes e lápides. descubro outro inteiro. meu coração são retalhos muitos que nem sempre se encontram. bebo o mundo nas bordas, danço precipícios previsíveis.


PAPEL-NAVALHA

1.
se vissem meu corpo atestariam
meu óbito
talvez seja uma pergunta

2.
dor de papel navalha
polissacarídeo contundente de
nano serrotes inofensivos a olho
nu
pupilas desorbitadas
pele fosca
susto
a moça de echarpe lilás cafona rasgou meu
mapa natal
ela disse morta
– a senhora está morta
e eu bem aqui com a
retina estridente e a voz
soluçante sem berrar
                                                                                                       [uma vírgula
dobrada amassada descartada
morta
rg cpf pis pasep cnh
morta
pagamento suspenso
morta
com trinta e sete notificações no whatsapp
morta
quem herdará meus seguidores
morta
olhando pras minhas córneas ela disse
morta


LUTO: O VIZINHO USA O MEU WI-FI

1.
no feed dele um quadrado preto
cinco mil comentários
estão brincando de morta-viva desde ontem

2.
meu dia de ir à padaria
rodízio entre vizinhos
não se engane
bati na casa cinco e o morador ficou entristecido
eu não estou morta e
ele sairá do trending topic


GOZO, LOGO EXISTO

recusaram minha prova de vida
desembainhei meu sugador de clitóris
gemi alto

 

2 comentários em “7 Poemas de Gabriele Rosa”

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