Processo de Criação de Mírian Freitas

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Mírian Freitas, mineira, reside em Juiz de Fora, doutora em Estudos de literatura (UFF), lecionou em Massachusetts,  EUA, por quase 10 anos e atualmente é professora do Núcleo de Línguas do IFSUDESTE/JF. Autora de Intimidade vasculhada (contos- Editora 7 Letras/Imprimatur), Exílios naufrágios e outras passagens (poesia- Editora Patuá), Caio Fernando Abreu: Uma poética da alteridade e da identidade- no Prelo- (Ensaio). Possui textos publicados em diversas antologias e revistas literárias.


Criação: subjetividade, desdobramento, compulsão

O processo de criação que vivencio ao escrever contos e poemas está pautado em um mundo muito subjetivo, pessoal, incluindo também o olhar muitas vezes contemplativo e imaginário que tenho pelas coisas mais peculiares da vida, ou mesmo por algum contexto centrado na coletividade. Acredito que todo processo de criação passa pelo “filtro” da pessoalidade, e atinge seu ápice, ou seja, seu desdobramento, quando ele se desloca em um movimento cíclico para dentro de nós. A produção necessita, antes de mais nada, ser íntima, interna, para depois vir à tona. Nós, humanos, temos a necessidade de nos comunicar, de dizer sempre alguma coisa acerca de algo; há de certa forma uma compulsão que norteia a intenção de traduzir nossas impressões sobre as coisas, os  sentimentos e sobre o universo em geral. A arte é sempre uma constante tradução de um “eu” ou de um “mundo” (re-) visitado.

Alteridade e busca

É interessante observar que no processo de criação artística, seja ele sob a vertente da escrita, da pintura, da fotografia, da escultura, etc, tende a provocar os estímulos da emoção: lágrimas, risos, fadiga, tensão e outros. Portanto, percebo que os textos escritos por mim vão neste sentido, pois primeiro desencadeiam em mim tais sensações ou emoções até que eu os liberto e eles seguem o caminho deles aos olhos dos leitores. Mas quem os sente e os lê primeiro sou eu. Cada linha do texto é como se fosse uma parte de um quebra-cabeças de nós mesmos. Ao escrever me sinto como se estivesse em busca de algo. Algo indefinido. Nunca sei o que é nem onde vou chegar e se vou chegar. Mesmo para escrever um pequeno texto, de 3 a 5 linhas, há um longo percurso. Durante este trajeto, deparo-me comigo mesma; não há no meu processo de criação um “eu inventado”. O que há, além de mim é um Outro no sentido da alteridade.  Em um texto você lida com palavras que provocam emoções e estas, podem ter sido captadas também de um Outro. Este Outro pode ser uma pessoa ou mesmo um ser vivo qualquer, ou um objeto. Sempre estamos falando sobre algo em um processo de construção que, muitas vezes, pauta-se até mesmo pela desconstrução e a descontinuidade de ideias e sentimentos. Todo esse processo acontece de maneira espontânea, não há nada formalizado ou esquematizado dentro de mim. Todo o texto é um acontecimento.

Autoconhecimento

Vivi anos de um luto profundo por perdas que tive; perdas de entes queridos, perda de identidade, términos muito doloridos de relações pessoais, portanto, consequentemente vivi também o luto de minha própria escrita. Sabemos que  o luto é uma fratura interna que faz com que nos sintamos sempre deslocados de nós mesmos. É como se a dor se repetisse em todos os instantes, tudo em um movimento cíclico, nunca para de doer. O tempo, como um amigo invisível, favorece à nossa cura. E a escrita fez parte também deste luto, pois as palavras de repente desapareceram por algum tempo, e o processo de criação ficou truncado por alguns anos. Aos poucos a escrita foi tomando forma novamente dentro de mim e ressurgiu, como naquele mito de Fênix, das cinzas renasceu a ave fortalecida. Foi um morrer e um renascer, assim como explicam as filosofias orientais e inclusive, o rito das meditações: para renascer é preciso antes, morrer. E isso me lembra o outono em New England (região onde escrevi quase todos os textos dos meus dois livros), onde pude presenciar a morte e o renascer das árvores, das tulipas; enfim, da natureza. Isto era como um ciclo da maturidade. No período de luto me senti como uma maple tree, perdendo suas folhas, endurecendo seus galhos, pacientemente aguardando o tempo renascê-la. Tudo isso relacionado ao processo do crescimento íntimo, também estava relacionado ao processo de criação que, consequentemente, está ligado ao “eu”. Se o “eu” morre, tudo está morto. Se o “eu renasce”, tudo nasce novamente. Com isso, abrem-se as portas para o conhecimento de si mesmo, porque a dor  desencadeia a busca e esta, por sua vez,  transforma a nossa trajetória. O livro de poemas Exílios naufrágios e outras passagens (Ed. Patuá, 2016), é o reflexo de todo este momento vivido em terras estrangeiras, em busca de uma identidade perdida. Os textos retratam muito o inverno, a solidão, o arrebatamento, o sentimento de estrangeira. Enfim, o exílio que é o retrato de um “eu” fragmentado, de identidade bipartida, ou mesmo perdida, sem rumo certo. Meu processo de criação todo, passa por uma escrita nômade, que retrata minha identidade, sempre estrangeira, fragmentada, exilada.

Influências literárias

Não poderia falar sobre o processo de criação literária sem citar algumas influências neste contexto. Desde muito jovem sempre li muito. Desde Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa a Walt Whitman. Procurava sempre ler os mais fortes, mais impactantes. Estes, tinham afinidade comigo,  com o meu “eu”. Li muito Oscar Wilde, Virgínia Woolf, Hilda Hilst, Herberto Helder, AL Berto, Clarice Lispector, que causaram uma enorme revolução de ideias, contrapontos, emoções  diversas  (Clarice foi objeto/tema da pesquisa do meu mestrado), e depois passei por Caio F. Abreu (objeto/tema do meu doutorado), e este, com toda a experiência camaleônica e estrangeira, fez-me compreender o sentimento de exílio que eu trazia. Nos EUA fui desde Sylvia Plath a  Mary Oliver. Lia tudo que me completava de forma impactante, ou mesmo que revelasse algum sentimento de afetividade, contemplação ou mesmo de ausência. Por último, já neste momento da pandemia, li a poesia de  Ocean Vuong em “Céu noturno crivado de balas”,  aliás, devorei-a. Foi algo meio canibalístico. Seus poemas me deram um clique, e houve, enfim, a ressurreição.

Processo criativo na pandemia

Durante a pandemia me isolei no campo por quatro meses e deste período surgiram novos textos que vieram de um desdobramento do “eu” que renascia. Contrário ao momento caótico que estamos vivendo, o cenário da pandemia para a criação de novos textos foi extremamente produtivo. O isolamento perpetuou-se no sentido de reflexões, leituras e criação. Senti que cada texto que surgia era como um vaga-lume na escuridão.  A pequena luz intermitente que pulsa ora aqui ora ali, procurando clarear, ainda que de forma fragmentada, toda escuridão ao redor. A poesia de Ocean Vuong, como já citei, foi crucial para trazer à tona o nascimento dos textos poéticos e de dois livros de poemas (Cadernos de exercícios poéticos e Escritos nômades), somando em torno  de mais de 150 textos escritos em quatro meses no campo).

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