4 Poemas de Stella Díaz Varín (Chile 1926 – 2006)

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Tradução e apresentação por Nuno Gonçalves

Stella Díaz Varín, também conhecida como la Colorina ou la víbora, é uma das maiores poetas latino-americanas. Seus cantos atravessaram com força e vigor as últimas décadas e atravessarão ainda muitas outras. nasceu na comuna chilena La Serena no dia onze de agosto do ano de 1926 e faleceu no dia treze de junho de 2006 na cidade de Santiago, capital do país erguido sobre a sangrenta conquista tematizada por Alonso de Ercilla y Zúñiga em sua epopeia moderna, La araucana. O Chile do tempo de Stella Díaz Varín foi também o Chile de Pablo Neruda e Nicanor Parra, foi o canto e a voz de Violeta Parra e também o lugar onde as atrocidades de Pinochet levaram, ao extremo, o arbítrio autoritário que se propagaria e se converteria em atmosfera política de muitos dos países sul-americanos. Foram anos intensos e turbulentos, a ressaca dos processos vividos naquelas décadas ainda se faz sentir no Chile contemporâneo, e em meio aqueles anos houve uma voz que não poderia passar despercebida. Seja por sua qualidade lírica, seja pelo espaço que ocupou no cenário intelectual daquela longa e estreita faixa de terra no extremo oeste do subcontinente ou ainda pela força intempestiva que, ironicamente, fizeram da vida e da poesia de Stella Díaz Varín o oposto exato do adjetivo que nomeava seu rincão de nascimento. Ela foi muitas coisas e semeou variegadas veredas: de nenhuma delas se pode dizer que foram serenas – em verdade, com muita justeza, mais bem se poderia descrevê-las como uma tempestade perfeita.


Do espaço em direção a cá, como dois tempos

A noite,
deslocada como asa de um cetáceo ferido.
Amortalhada sempre que a pupila negue sua orfandade.
Mar pomposo e grotesco seio;
quando a claridade se faça em mim
não necessitarei de vossa amada boca,
não necessitarei do meloso solilóquio de tua vertigem.


Me tens, como um peixe à sua escama,
miseravelmente unida a ti,
levando-te como uma criança canibal ao peito de sua mãe.
E não hei de desperdiçar hora, para maldizer
tuas parições de planetas fosforescentes
que vomitas ao meu lado sem nenhuma delicadeza… …

Esquecida como árvore do deserto,
onde transplanta o viajante seu êxtase sem experiência,
feliz de abandonar o barco,
desejando encontrar na terra
a veia misteriosa da felicidade.
Navegante audaz,
dissociador do mar e da terra,
veia obscura será teu caminho em direção ao infinito!

Quem, senão o esquecimento,
quem senão a medida de uma juventude posta de lado,
vem em minha ajuda agora.
Agora que tenho aprendido a pronunciar palavras
contra Deus e seus signos
e me ajoelho de hipocrisia ante os conhecidos.
Quando em ângulo reto junto à uma porta
espero a palavra de boa vinda.
E só escuto dentro, ruído de copos
cheios de um vinho generoso que jamais provarei…

Existem continentes simples, de um só país
com cidades elementares e casas de um piso
onde poderia me abandonar
e às cegas buscar o ócio e suas virtudes.
Mas a lembrança apenas de tão buscado lugar,
me pinta à cara um gesto de asco.
– Como se penetrara à habitação do amor
e me encontrara com três cadáveres
ante uma janta inconclusa de ostras descompostas –.

*****

Dois de novembro

        Não quero
Que meus mortos descansem em paz
Têm a obrigação
De estar presentes
Viventes em cada flor que me roubo
Às escondidas
À linha da meia-noite
Quando os vivos à beira da insônia
Jogam os dados
E enfiam sua amargura

        Os exorto a estarem presentes
Em cada pensamento que desvelo.

       Não quero que os meus
Esqueçam-me baixo à terra
Os que ali os puseram
Não resolveram a eternidade.

        Não quero
Que aos meus mortos os afundem
Os ignorem
Os façam esquecer
Aqui ou lá
Em qualquer hemisfério

      Obrigo aos meus mortos
Em seu dia.
Os descubro, os transplanto
Os desnudo
Os levo à superfície
À flor da terra
Onde os está esperando
o ninho da acústica.

*****

Breve história da minha vida

     Comando soldados.
E lhes hei dito acerca do perigo
de esconder as armas
baixo às olheiras.
Eles não estão de acordo.
E como estão todo o tempo discutindo
sempre trazem perdida a batalha.

Já não se pode se valer de ninguém.
Eu não posso estar em tudo;
para isso pago cada gota de sangue
que se derrama no inferno.

No inverno, devo me dedicar
a oxidar um ou outro sepulcro.
E na primavera, construo diques
destinados aos naufrágios.

       Assim é, enfim…
As quatro estações do ano
não me contemplam, senão trabalhando

     Enfio agulhas
para que as viúvas jovens
fechem os olhos de seus maridos,
e desperdiço minutos, vislumbrando
à entrada de uma flor de lavanda
de uma simples abelha,
para separá-la em duas
e vê-la mover-se:
a cabeça em direção ao sul
e o abdômen em direção à cordilheira.

     Assim é
como o dia de Páscoa da Ressurreição
me encontra fatigada
e sem o sorriso habitual
que nos faz tão humanos
ao dizer da gente.

*****

A casa

Deixavam minha cabeleira pendurada no tronco da
porta como um troféu
Sem precedente na história dos índios mananciais,
e uma cavidade aberta,
para a mirada dos olhos indiscretos
colocada à margem do abismo…
E esta era minha morada.

Uma víbora, trancada na jaula,
destinada a qualquer pássaro,
e uma pedra, caída temporalmente do cume,
e uma pedra nômade em busca de aventuras
servia de porta, de mesa de copa…

Que quereis que se faça com estes materiais.
Nada. Senão escrever poesia melancólica.

Acaso, quando a noite
se desperte debaixo dos morcegos,
não haja outra coisa senão uma sensação,
e estas vertentes que lhe aparecem desde o fundo
dos olhos.

Não haja
senão uma avalanche de filhos da pedra
de filhas da água
de filhos das árvores.

Então escreverei minha biografia
ao uso dos poetas indecisos.
Olharei através de uma chama de cobalto
e distinguirei objetos esquecidos:
como quando dormia apoiada à parede
e tudo parecia belo sem sê-lo.
Tomarei uma de minhas pequenas flautas suspensas
e entoarei a canção do amor.

 

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