Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Gladys Mendía
Krisma Mancía nasceu em San Salvador, El Salvador, em 1980. Estudou letras na Universidade de El Salvador (UES), teatro na Escola de Arte do Ator e participou do workshop de talentos da Casa do Escritor de El Salvador, sob a orientação do escritor Rafael Menjívar Ochoa. Possui formação em escultura e cerâmica pelo Centro Nacional de Artes (CENAR) e desde jovem recebeu formação abrangente em Gênero e Direitos Humanos. É criadora da marca Eccoleqúa, especializada em joias feitas com materiais reutilizáveis. Publicou La era del llanto na Coleção Nuevapalabra, pela Editora DPI (Dirección de Publicaciones e Impresos) de El Salvador, em 2004; em novembro de 2005, Viaje al Imperio de las Ventanas Cerradas venceu o I Prêmio de Poesia Jovem La Garúa na categoria internacional e foi publicado em 2006 pela editora La Garúa, de Santa Coloma de Gramenet, Barcelona, Espanha; em 2016, publicou Nueva Cosecha pela Editorial Casa de Poesía de Costa Rica e Pájaros imaginarios y trenes invisibles entre tu ciudad y la mía, editado pela Valparaíso da Espanha e publicado pela Editora Municipal da Prefeitura de San Salvador. Vários de seus textos literários foram incluídos em diversos jornais culturais, antologias e revistas da América Latina e Espanha. Ela também participou de vários festivais, conferências e recitais relacionados à literatura em níveis nacional e internacional. Além disso, ministra oficinas e assessora em literatura e arte reciclável. Foi a primeira diretora designada para a Casa de Cultura da Mulher na primeira sede da Ciudad Mujer. Atualmente, trabalha no Ministério da Cultura de El Salvador, coordenando os Jogos Florais nacionais.
[CANSADO DE CHOVER]
Cansado de chover,
cada Lázaro guarda seu coração
na mesinha de cabeceira.
Cansado de chover
com uma camisa de força e um sorriso adequado,
leva o cachorro para passear,
porque às vezes os cadáveres são carregados como acessórios,
como um relógio de ouro prestes a explodir,
e sabe que chove
e que esqueceu o guarda-chuva em casa,
e sabe que
é hora de arriscar a boa reputação.
Lázaro fala com legendas em italiano para um manequim:
“Procuro uma mulher decente
que é difícil de encontrar como uma agulha num palheiro”.
O manequim responde com sotaque catalão,
com legendas em inglês e entre aspas:
“Me procure debaixo da agulha.
Onde dói.
Onde aperta o amor.
Onde não me acho decente.”
Cansado de chover
no Hotel de la Luna,
Lázaro despe o manequim com a precisão de um funcionário público
e com meias, luvas e lenços brancos
inventam o jogo de quem sufoca quem.
No meio de um cigarro, intervém o serviço de inteligência.
Interrogam o abajur, que parece suspeito de plágio.
Interrogam o encosto de uma cadeira, que parece uma cadeira.
Ameaçam o cinzeiro com pinças cirúrgicas.
Prendem por associações ilícitas dois velhos corações conservados em vinagre.
A precipitação, a chuva, precipita-se. Não para de chover.
Desmorona-se em verde as folhas do tempo.
Um pequeno poço de estrelas
gira na garganta de um beija-flor
que morreu ontem no quarto do hotel.
De um abajur de cabeceira se apaixonou uma borboleta negra
e vive lá
com uma respiração de uma besta solta.
Lázaro sabe que a chuva tem uma memória de cicatrizes,
um registro de coisas pessoais que ninguém deve saber.
Não é que ele não queira,
mas todos os dias há uma ferida sobre outra ferida.
E sabe que não há um pedaço de mim que não esteja quebrado,
Nem uma fechadura que não tenha sido violada,
nem uma Esparta que não tenha sido saqueada.
Chove, Lázaro. Chove fogo, querido.
Não precisamos de você ferido. Não queremos outro milagre.
Não queremos você aqui.
Temos mortos suficientes andando
para suportar suas bochechas rosadas.
Lázaro, a cidade grita amor
e isso basta.
[OS RIOS CRESCEM]
Os rios crescem
E dentro de seu ventre escuro
as crianças vêm flutuando.
Vêm de muito longe.
A correnteza do rio levou suas casas.
O rio os abraçou como quem abraça seus filhos
e os arrastou para seu palácio líquido
para apedrejá-los com suas próprias pedras,
amordaçá-los com sacos plásticos.
Aí vêm as crianças,
flutuando
sobre um pedaço de madeira,
um pedaço de madeira que antes era uma janela,
a janela onde observavam sua mãe negociar com o rio
para encontrar um anel de ouro,
mas o rio sujo trouxe apenas pregos enferrujados
que furaram seus dedos e a fizeram chorar.
E aí vêm as crianças
flutuando
como marinheiros de carne podre.
O furacão cresce na boca de outra criança.
Prepare os lenços amarelos
porque aí vem outra criança
flutuando no rio!
[SÃO TEMPOS DIFÍCEIS]
São tempos difíceis
os cidadãos geram em seus peitos flores de chumbo
e explodem.
Os fantasmas enterram seus vivos no jardim
para capinar suas sepulturas
cada vez que cresce uma flor de chumbo,
mas não há remédio
todas as flores explodem.
São tempos difíceis
a única coisa que sabemos é que todos carregamos uma bomba-relógio nas entranhas.
Somos os mesmos suspeitos de sempre
unidos e perigosos
como as abelhas que atacam em massa.
São tempos difíceis
as flores de chumbo ficam maiores,
as feridas profundas, a fome visível,
e os zumbis-cidadãos caem a esquerda e a direita nas ruas,
sujando a bela radiografia desta cidade sem pássaros,
desta cidade sem trens,
desta cidade de pernas quebradas
das quais não podemos contar para escapar.
Dificulta deixar de amar, deixar de ver, deixar de sentir
o pulso doente deste animal que temos sob os pés.
Só resta a tarefa de chorar por ele,
tirar o lixo do útero, sussurrar para ele
que não morra, implorar para ele
que não apedreje o coração das crianças, lembrar para ele
que ele deve ser uma boa mãe e bater em sua barriga
para que sua semente ressuscite.
(E que Deus me mate se isso não é poesia,
que teu Deus me mate
se existir.)
[VOCÊ OUVE ISSO?]
Você ouve isso?
O Chile privatiza o mar.
Me pergunto: como se vende o mar?
Por quilo? Por galão?
Quem não quer um pedacinho de mar?
Viver em uma anêmona, com um jardim de coral, algas nas janelas,
e ocasionalmente confiar o correio a uma água-viva.
Passará pela rua um cardume de atum,
uma multidão de ostras com pérolas contrabandeadas.
Quem não quer um pedacinho de mar?
Veja que sua mãe já comprou um traje de mergulho para nos visitar.
Veja que atravessar fronteiras terrestres é complicado:
é preciso tirar um visto, comprar uma passagem, viajar de trem…
Porque eu acredito que você e eu merecemos ter um pedacinho de mar
onde não podemos chorar,
onde não nos falta sal para cozinhar.
Anos depois, olharemos o calendário
e teremos medo de pagar o aluguel marítimo a cada mês,
de que nossos filhos, na escola, não aprendam a evitar anzóis corretamente.
Sua mãe virá uma vez por mês, é claro, por isso ela comprou o traje de mergulho.
—Lembra dos pássaros?, ela me dirá com um sotaque estrangeiro terrestre.
Eu balançarei minha cauda de peixe envergonhado e compararei:
—Ah, sim. Eles se parecem com as águas-vivas do correio.
[QUANDO O TREM CRUZAR NOVAMENTE]
Quando o trem cruzar novamente a enorme ferida da cidade,
vou te contar por que tenho uma cicatriz no meu joelho esquerdo.
Vou te contar que a guerra me deu essa cicatriz.
Claro, para as pessoas eu digo que a culpa foi de um arame farpado
e não posso explicar a cena do crime.
A guerra me deu essa cicatriz, eu digo a eles,
uma tarde em que todos fugíamos do pôr do sol
quando minha mãe olhou para trás
e viu meus tios sendo recrutados pelos homens de verde-oliva.
Ela soltou minha mão e me disse para correr para a casa da avó.
Meus tios eram jovens demais para pegar um rifle
mas foram treinados à força para ir à guerra e matar crianças e estuprar idosas
depois eles voltaram para o silêncio
e suas mãos tremiam porque atiraram tanto
que seus dedos se queimaram.
A guerra me deu essa cicatriz,
quando meu pai me disse: “vamos para o mar”
e encontramos um peixe morto que a maré vermelha cravou na areia
mas não era um peixe, era minha mãe.
Claro que às pessoas eu digo que minha mãe morreu velha,
que meus tios estiveram no manicômio,
que minha cicatriz não foi culpa de uma garra de abutre
e não posso explicar a cena do crime.
[CORREU O BOATO]
Correu o boato: o velho trem voltaria a funcionar.
Minha mãe me vestiu de domingo
com aquela felicidade quase amarela.
Mas chegamos à casa da avó com lágrimas nos olhos.
À beira dos trilhos
amontoava-se a face da pobreza.
Má ideia. Aos turistas não agrada pagar
por uma paisagem decorada de miséria.
Os donos do trem voltaram a adormecê-lo num museu
e deixaram os trilhos serem invadidos pela grama, pelas galinhas cegas,
pelas casas construídas com notas anônimas de despejo
e aquela gente com cara de pobreza
se esconde debaixo do tapete
como se fosse uma doença venérea vergonhosa.
[A VEZ QUE VIAJEI]
A vez que viajei nas entranhas da terra
foi no metrô de Buenos Aires.
A cidade era linda vista de baixo.
Deixei para trás a Casa Rosada e a Plaza de Mayo,
sentei-me em um daqueles bancos onde milhões,
milhões, milhões e milhões de pessoas se sentaram.
Toquei na madeira do banco. É a mesma de cem anos atrás.
A mesma.
Me disseram que é o primeiro metrô das Américas.
E eu imaginei os trabalhadores, alguns recém-chegados dos navios,
cavando com as mãos as entranhas de um novo lar.
Através das janelas não se via a miséria,
apenas as luzes que passavam rapidamente.
Também não reparei nos mendigos que sobem para cantar nos vagões.
Cantavam muito bem.
Meu espanto de turista do terceiro mundo
não me permitia usar outros óculos.
[VOLTO PARA CASA]
Volto para casa e cheiro a pássaro úmido de contrabando,
a tempo de prateleira,
a presença de migalha.
O cadáver que simpatiza comigo no sofá
sou eu:
uma inquietude quando nos olhamos nos olhos.
[VI NAS RUAS OS HERÓIS]
Vi nas ruas os heróis que se vestem de secretária, mendigo ou jardineiro,
sem pose, sem medalhas, como simples cidadãos.
E ali estava eu, aconchegado
e com um ataque de pânico na estação do trem
esperando pelo pior,
transformado mais em beijo do que em corpo.
Um beijo
com uma linguagem de peixes coloridos.
Olho para minhas mãos,
vou ao risco de perder tudo.
Será que em algum lugar do mundo
uma xícara de café esfria?
[HÁ BEIJOS INFINITOS]
Há beijos infinitos
beijos de beijos sobre beijos dentro de beijos
há beijos confessados
beijos em flagrante, clandestinos, fugitivos
beijos próprios, alheios e públicos
beijos com gosto de esquecimento, raiva e despedida
beijos em madeira
de cedro, pinho e mogno
há beijos com legendas, com galhos na língua
com urgência de poço, abismo, cova comum
beijos enviados pelo correio, carregados em carteiras
trazidos dentro de livros
beijos e beijos e mais beijos
E sou uma estação de beijos
esperando o próximo trem.
[VOCÊ SABE, MAYRA]
Você sabe, Mayra, irmã da distância, minha querida veia,
há coisas que podem estar acima dos ombros
como a poeira,
o cabelo negro,
o perfume marítimo que se esconde na lapela
e nem percebemos.
Abrir bem os olhos e pensar no passado,
em um nome
e repetir o nome
e encontrar o nome soletrado no trem das três da tarde.
Acontece. Se você desejar muito
e se procurarmos nossas mãos no fundo da terra
e construirmos os trens que faltam
entre sua cidade e a minha.
Então eu abordaria você, querido vagão de transeuntes.
Eu pegaria sua mão mais cedo ou mais tarde,
como um poema que não precisa ser lido, mas absorvido.