2 Poemas de Gladys Mendía (Venezuela, 1975)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Imersos nesta viagem à poesia de Gladys Mendía, habitamos as polaridades palavra-metáfora, onde os elementos se ocultam nas suas próprias sensações. Explico-me: onde se lê fogo, lê-se cinza; onde se lê neve, lê-se vapor. Na vertigem dos sentidos, o nosso olhar se espraia por superfícies inóspitas, pois cegamos tal é a frigidez do branco. E é na polaridade que nos descobrimos mais humanos. Somos pluralidade, o que emanamos regressa até nós num grande espectro de cinzentos.

Ao longe, um ser insone começa a despertar e vem nos revelar um mundo novo. Assim também é a Nova Era planetária. Cada ser desperta de um grande sono e toma consciência da sua posição no (seu) mundo. A poeta, como decifradora dos mistérios reais, diz-nos que vê tudo a derreter-se em sombras e que mesmo que não te movas a viagem começou. Pois bem, o mundo de baixa densidade começa a desvanecer-se para outro mundo mais elevado se impor. É necessário ter consciência das sombras para elas se tornarem visíveis, reais, humanas. Nesta jornada de sombras e luzes, vamos começando a ter pé na piscina coberta de neve, de noite.

Tudo é desconstrução para algo melhor. Ou tudo é ilusão para ter um fim. Embriagados ficam, então, os sentidos, pois o delírio é arder com os olhos fechados. O som é compassado, o fogo é omnisciente: tudo arde sem saber. Nós, leitores, temos uma visão privilegiada sobre a sarça ardente. Contudo, apenas podemos tocar em metáforas. O gesto sem forma ou cor impõe-se e somos convocados à ordem, pois apenas a desobediência pode nos salvar.

[…]

Quem viaja não sai de si, sai dos condicionamentos sociais e, tomando maior distância e consciência, volta ao seu centro, ao seu sol, à sua solidão. Tal como existe, neste livro, um Trânsito do Alfabeto, encontro também um trânsito das sensações: visuais (cores), olfativas (cheiros), auditivas (melodias), orais (versos/manifestos), tácteis (ordens e formas). Um gradiente de cor contido na vida que nunca cessa, nem pelo fogo, nem pelo fado.

Palavras que entreabrem algumas janelas – escancarar tudo o que se fecha, é essa a luta da poeta.

E se a poeta diz que não há sistema / não há sentido / não há níveis nem formas / não há ordem, vocês já sabem como ler isto à luz do vosso entendimento.

A ordem é intuitiva; é uma manifestação do divino – ela, simplesmente, é.  Assim como a estrada decidiu, contra todas as possibilidades, ser rio.

Sandra Santos, Fragmentos do prefácio do livro O álcool dos estados intermediários (2020), de Gladys Mendía.


O TRÂNSITO DO ALFABETO

a estrada pensa que tempo e morte são o mesmo deus  sente a gravidade dos corpos     e decide ser rio

agora nada lhe pesa     nem as rochas     nem os peixes  nem as plantas     desde o fundo     vê a si mesma correndo em seu humor alcoolizado

compreende a mentira da transparência     a transparência é ilusão     é o que lhe diz a poeira acumulada      que ela respira sem ver na escuridão

escuta palavras que entreabrem algumas janelas     sente que nada está em seu lugar     não há sistema     não há sentido     não há níveis nem formas     não há ordem

o que faz descolar é o vazio     o alfabeto como uma paisagem sem destino     o transitar errôneo dos sons de uma língua a outra     porque não é possível escutar   porque é a ilusão dos confusos     escutar

o alfabeto em trânsito é a roleta russa a estrada quando é rio se livra do jogo


O ÁLCOOL DOS ESTADOS INTERMEDIÁRIOS

o tempo está em guerra por pura violência          por se saber infinito e livre          transmitindo em todos os canais simultaneamente          o tempo é deus          é a alma que arde  sim          há piscadelas nos estados intermediários          a asma é piscar          como tumores líquidos chovemos          às vezes o mel se encontra em alguns olhos          porém o mel é o álcool do incêndio

na caverna chove para dentro          as gotas lutam por ser gotas porém são chuva          a chuva é o álcool dos estados intermediários          as gotas se evaporam          não há movimento          a caverna é o espaço sem forma          sem forma nem claridade não há reflexo          porém tudo arde vendo a si mesmo          o incêndio é a piscada que esconde o espelho

o instante em que a noite se converte em dia é piscada   nos estados intermediários não há movimento          o barco por trás da bruma é piscada          nos estados intermediários não há movimento          os olhos que abraçam são piscada          nos estados intermediários não há movimento          a viagem que ainda não chega ao destino é piscada          nos estados intermediários não há movimento

gagueiras          compulsões          excessos          fermenta a mescla ainda sem sabor          não há voz neste sistema          porém vibra se expande          suspensa em ondas de letras viaja pelo túnel          o álcool produz faíscas entre pureza e matizes          pureza limite          dor          matizes abertos são construídos          os matizes são o álcool dos estados intermediários

no código original          os esfumados são os que se adaptam  os que se mostram ficando em linhas confusas ao passar  sabem que do metabolismo de todos os discursos será produzida a voz com meu nosso álcool          com minha nossa alteridade

eu me perco nas medidas da caverna          sempre há testemunhas delatoras          juízes          assovios entre janela e janela          pela ausência da voz é que movemos as intenções não chegamos a nos saber língua          não nos sabermos língua é o álcool dos estados intermediários

a voz nos esquiva          resiste o mosaico que herdamos há séculos          gerações os expulsam          os deslocamentos são construídos          pela janela escuto a cadência          todos sabem que o álcool é a voz          a voz é o álcool do incêndio

vejo a espuma do incêndio descer por ti          o peso da espuma chocar com as pedras que flutuam          vou tão lento que não posso ler os matizes do túnel          será que sentes meu dedo ali          da janela estiro a minha mão          porém vou tão lento          a pureza me arranha com seu limite          lhe incomoda a asma que arde          a asma que arde é o álcool dos estados intermediários

se dou um salto pela janela          se deixo meu dedo ali          sim somos os desfocados          a voz arde sem saber          as mãos ardem          sem          saber          porém    sentem          o    álcool evaporar-se          iluminar tudo na densidade dos nomes          no trânsito quase voraz          onde o trânsito quase voraz          é o álcool do incêndio

dentro da caverna há um barco          balança de medo          as cutiladas do mar desafinam o equilíbrio          o barco quer ser mar porém é caverna          segrega um hormônio chamado seguir           quando alguém vai o tempo o esconde          quando alguém não está é porque saltou pela janela          lentamente como matizes desfocados

o barco se deforma          oscila entre janela e caverna          pisca esfumado sem cinzas do incêndio           desaparece por séculos e agora é chuva          chuva como fotografia da espuma que desce por ti          será que também sentes a voz como gotas entrando pela caverna

seguimos à espera do temporal          para que ao final nos arremesse pela janela do barco          então a neve nos crave seus caninos gotejando          a neve negra que arde sem cinzas           nós os desfocados          os nomeados          os confusos

escuta-se o incêndio gritar nas folhas das árvores          o balançar do incêndio nas folhas das árvores          o vento sopra para acalmar a sua dor          o vento não sabe          o vento é o álcool do incêndio

às vezes esqueço que estou no túnel quando vejo teu dedo ali          separo os lábios para não me ferir          porém já é tarde ardes na língua sem cinzas          a língua é dor quando a pureza a rodeia          a dor não é o álcool dos estados intermediários          será que a dor dos desfocados é ilusão será que a dor dos confusos é pura ilusão

a viagem é a destruição lenta          é o relâmpago da neve que castiga com cegueira estrelada          nada começa sem que algo termine porém sempre algo começa nos estados intermediários          algo que vai sem se mover          burlando o rito tudo arde logicamente          é o incêndio agridoce          nós as mangas caídas como estrelas fugazes

no túnel não há almofada que sustente a cabeça          não há roupa que cubra o corpo          não há golpe que doa          viajar é enterrar-se          dar as costas ao céu

o gás carbônico nos espaços apertados          asfixia as mangas caídas no chão          as mangas luminosas          o chão brilha    os sinais de reduza velocidade são em vão           os sinais evite ficar sem combustível são em vão          os sinais de evite incêndios são em vão

estou diante do incêndio           de costas para a voz          a neve é o mar          é o uivo          quem é alguém senão um uivo em silêncio          tudo arde calculadamente          o que é a voz senão um efeito corrosivo

as sementes vão em clãs com vendas nos olhos          a voz é construída lentamente          é a brasa sob a cinza          a voz é o aceso oculto          o aceso oculto é o álcool dos estados intermediários

não chamo e te digo que sou meu          estrangeiro          viúvo órfão          desfigurada manga caída como uma estrela fugaz

somos devorados pela voz          a voz ainda não existe sobrevive a nós          nós as mangas deslocadas sem arquétipo a febre não é febre chama-se incêndio          fértil incêndio viúvo           a terra não treme          o pulso dos estados intermediários inunda o túnel          nós os temperamentais os desafinados          esperando as marés da voz

vimos um cavalo branco com asas sobre a cordilheira          subimos por ele e não o encontramos          não encontramos as palavras do incêndio          tudo arde e o vemos tão verde          o que é o incêndio senão um efeito exponencial

os morcegos vão de árvore em árvore          voam como se não estivessem ardendo          parecem vivos          não sabem que são chamas          o pior está passando          e não o sabemos          tudo arde matematicamente          deixa-se ver por um segundo vibrando no álcool se vem por cima          tão desfocado          tão nomeado          tão confuso

são as rochas ardendo junto à cascata ardendo          me faz chover          dói nos olhos          será que queres compartilhar a minha chuva          como mangas caindo lentamente como mangas desesperadas


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