Curadoria e tradução de Floriano Martins
Imersos nesta viagem à poesia de Gladys Mendía, habitamos as polaridades palavra-metáfora, onde os elementos se ocultam nas suas próprias sensações. Explico-me: onde se lê fogo, lê-se cinza; onde se lê neve, lê-se vapor. Na vertigem dos sentidos, o nosso olhar se espraia por superfícies inóspitas, pois cegamos tal é a frigidez do branco. E é na polaridade que nos descobrimos mais humanos. Somos pluralidade, o que emanamos regressa até nós num grande espectro de cinzentos.
Ao longe, um ser insone começa a despertar e vem nos revelar um mundo novo. Assim também é a Nova Era planetária. Cada ser desperta de um grande sono e toma consciência da sua posição no (seu) mundo. A poeta, como decifradora dos mistérios reais, diz-nos que vê tudo a derreter-se em sombras e que mesmo que não te movas a viagem começou. Pois bem, o mundo de baixa densidade começa a desvanecer-se para outro mundo mais elevado se impor. É necessário ter consciência das sombras para elas se tornarem visíveis, reais, humanas. Nesta jornada de sombras e luzes, vamos começando a ter pé na piscina coberta de neve, de noite.
Tudo é desconstrução para algo melhor. Ou tudo é ilusão para ter um fim. Embriagados ficam, então, os sentidos, pois o delírio é arder com os olhos fechados. O som é compassado, o fogo é omnisciente: tudo arde sem saber. Nós, leitores, temos uma visão privilegiada sobre a sarça ardente. Contudo, apenas podemos tocar em metáforas. O gesto sem forma ou cor impõe-se e somos convocados à ordem, pois apenas a desobediência pode nos salvar.
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Quem viaja não sai de si, sai dos condicionamentos sociais e, tomando maior distância e consciência, volta ao seu centro, ao seu sol, à sua solidão. Tal como existe, neste livro, um Trânsito do Alfabeto, encontro também um trânsito das sensações: visuais (cores), olfativas (cheiros), auditivas (melodias), orais (versos/manifestos), tácteis (ordens e formas). Um gradiente de cor contido na vida que nunca cessa, nem pelo fogo, nem pelo fado.
Palavras que entreabrem algumas janelas – escancarar tudo o que se fecha, é essa a luta da poeta.
E se a poeta diz que não há sistema / não há sentido / não há níveis nem formas / não há ordem, vocês já sabem como ler isto à luz do vosso entendimento.
A ordem é intuitiva; é uma manifestação do divino – ela, simplesmente, é. Assim como a estrada decidiu, contra todas as possibilidades, ser rio.
Sandra Santos, Fragmentos do prefácio do livro O álcool dos estados intermediários (2020), de Gladys Mendía.
O TRÂNSITO DO ALFABETO
a estrada pensa que tempo e morte são o mesmo deus sente a gravidade dos corpos e decide ser rio
agora nada lhe pesa nem as rochas nem os peixes nem as plantas desde o fundo vê a si mesma correndo em seu humor alcoolizado
compreende a mentira da transparência a transparência é ilusão é o que lhe diz a poeira acumulada que ela respira sem ver na escuridão
escuta palavras que entreabrem algumas janelas sente que nada está em seu lugar não há sistema não há sentido não há níveis nem formas não há ordem
o que faz descolar é o vazio o alfabeto como uma paisagem sem destino o transitar errôneo dos sons de uma língua a outra porque não é possível escutar porque é a ilusão dos confusos escutar
o alfabeto em trânsito é a roleta russa a estrada quando é rio se livra do jogo
O ÁLCOOL DOS ESTADOS INTERMEDIÁRIOS
o tempo está em guerra por pura violência por se saber infinito e livre transmitindo em todos os canais simultaneamente o tempo é deus é a alma que arde sim há piscadelas nos estados intermediários a asma é piscar como tumores líquidos chovemos às vezes o mel se encontra em alguns olhos porém o mel é o álcool do incêndio
na caverna chove para dentro as gotas lutam por ser gotas porém são chuva a chuva é o álcool dos estados intermediários as gotas se evaporam não há movimento a caverna é o espaço sem forma sem forma nem claridade não há reflexo porém tudo arde vendo a si mesmo o incêndio é a piscada que esconde o espelho
o instante em que a noite se converte em dia é piscada nos estados intermediários não há movimento o barco por trás da bruma é piscada nos estados intermediários não há movimento os olhos que abraçam são piscada nos estados intermediários não há movimento a viagem que ainda não chega ao destino é piscada nos estados intermediários não há movimento
gagueiras compulsões excessos fermenta a mescla ainda sem sabor não há voz neste sistema porém vibra se expande suspensa em ondas de letras viaja pelo túnel o álcool produz faíscas entre pureza e matizes pureza limite dor matizes abertos são construídos os matizes são o álcool dos estados intermediários
no código original os esfumados são os que se adaptam os que se mostram ficando em linhas confusas ao passar sabem que do metabolismo de todos os discursos será produzida a voz com meu nosso álcool com minha nossa alteridade
eu me perco nas medidas da caverna sempre há testemunhas delatoras juízes assovios entre janela e janela pela ausência da voz é que movemos as intenções não chegamos a nos saber língua não nos sabermos língua é o álcool dos estados intermediários
a voz nos esquiva resiste o mosaico que herdamos há séculos gerações os expulsam os deslocamentos são construídos pela janela escuto a cadência todos sabem que o álcool é a voz a voz é o álcool do incêndio
vejo a espuma do incêndio descer por ti o peso da espuma chocar com as pedras que flutuam vou tão lento que não posso ler os matizes do túnel será que sentes meu dedo ali da janela estiro a minha mão porém vou tão lento a pureza me arranha com seu limite lhe incomoda a asma que arde a asma que arde é o álcool dos estados intermediários
se dou um salto pela janela se deixo meu dedo ali sim somos os desfocados a voz arde sem saber as mãos ardem sem saber porém sentem o álcool evaporar-se iluminar tudo na densidade dos nomes no trânsito quase voraz onde o trânsito quase voraz é o álcool do incêndio
dentro da caverna há um barco balança de medo as cutiladas do mar desafinam o equilíbrio o barco quer ser mar porém é caverna segrega um hormônio chamado seguir quando alguém vai o tempo o esconde quando alguém não está é porque saltou pela janela lentamente como matizes desfocados
o barco se deforma oscila entre janela e caverna pisca esfumado sem cinzas do incêndio desaparece por séculos e agora é chuva chuva como fotografia da espuma que desce por ti será que também sentes a voz como gotas entrando pela caverna
seguimos à espera do temporal para que ao final nos arremesse pela janela do barco então a neve nos crave seus caninos gotejando a neve negra que arde sem cinzas nós os desfocados os nomeados os confusos
escuta-se o incêndio gritar nas folhas das árvores o balançar do incêndio nas folhas das árvores o vento sopra para acalmar a sua dor o vento não sabe o vento é o álcool do incêndio
às vezes esqueço que estou no túnel quando vejo teu dedo ali separo os lábios para não me ferir porém já é tarde ardes na língua sem cinzas a língua é dor quando a pureza a rodeia a dor não é o álcool dos estados intermediários será que a dor dos desfocados é ilusão será que a dor dos confusos é pura ilusão
a viagem é a destruição lenta é o relâmpago da neve que castiga com cegueira estrelada nada começa sem que algo termine porém sempre algo começa nos estados intermediários algo que vai sem se mover burlando o rito tudo arde logicamente é o incêndio agridoce nós as mangas caídas como estrelas fugazes
no túnel não há almofada que sustente a cabeça não há roupa que cubra o corpo não há golpe que doa viajar é enterrar-se dar as costas ao céu
o gás carbônico nos espaços apertados asfixia as mangas caídas no chão as mangas luminosas o chão brilha os sinais de reduza velocidade são em vão os sinais evite ficar sem combustível são em vão os sinais de evite incêndios são em vão
estou diante do incêndio de costas para a voz a neve é o mar é o uivo quem é alguém senão um uivo em silêncio tudo arde calculadamente o que é a voz senão um efeito corrosivo
as sementes vão em clãs com vendas nos olhos a voz é construída lentamente é a brasa sob a cinza a voz é o aceso oculto o aceso oculto é o álcool dos estados intermediários
não chamo e te digo que sou meu estrangeiro viúvo órfão desfigurada manga caída como uma estrela fugaz
somos devorados pela voz a voz ainda não existe sobrevive a nós nós as mangas deslocadas sem arquétipo a febre não é febre chama-se incêndio fértil incêndio viúvo a terra não treme o pulso dos estados intermediários inunda o túnel nós os temperamentais os desafinados esperando as marés da voz
vimos um cavalo branco com asas sobre a cordilheira subimos por ele e não o encontramos não encontramos as palavras do incêndio tudo arde e o vemos tão verde o que é o incêndio senão um efeito exponencial
os morcegos vão de árvore em árvore voam como se não estivessem ardendo parecem vivos não sabem que são chamas o pior está passando e não o sabemos tudo arde matematicamente deixa-se ver por um segundo vibrando no álcool se vem por cima tão desfocado tão nomeado tão confuso
são as rochas ardendo junto à cascata ardendo me faz chover dói nos olhos será que queres compartilhar a minha chuva como mangas caindo lentamente como mangas desesperadas