2 Poemas de Nelson Cárdenas (Cuba, 1971)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Nelson Cárdenas é um poeta, ensaísta e professor universitário cubano residente nos Estados Unidos. Seu poema “El Guerrero” ganhou o segundo prêmio da Editora Vigía, que o publicou como poema-objeto. Ele é o autor de duas coleções de poemas, El guerrero e Días de la Espada. Seu livro sobre a narrativa cubana da diáspora, Isla que no existe, ganhou o Prêmio Nacional de Literatura “Pinos Nuevos”, na categoria Ensaio, em 2002. Foi professor de Literatura do Caribe na Universidade de Havana e pesquisador do Centro de Estudos do Caribe da Casa das Américas. Cárdenas tem doutorado em Estudos Hispânicos pela Universidade da Pensilvânia. Atualmente é professor de Literatura e Escrita Criativa na Universidade do Texas em El Paso.


DO ESTÁDIO

Uma ave marinha traça seu voo paralelo ao horizonte. Antes era o fim, a queda no abismo das águas, a beira do planeta. Agora é só uma leve curva que desenha o visual. Observar o horizonte não é imaginar, mas sua metáfora. É uma manobra para descansar os olhos. Mas uma ave marinha traça seu voo paralelo.

     Abaixo os homens traçam ciclos suados
     que lhes restauram a saúde.
     As mulheres a mesma coisa.
     Uma e outra vez no mesmo contorno
     até esgotarem os sapatos.
     Aqui não há caça ou fuga
     apenas o repetido afã de endurecer os músculos
     e os desejos que o sol dissolve em suas cabeças.
     Uma e outra vez no mesmo contorno,
     a cada evolução uma pretendida melhora.

     Não mais digna nas arquibancadas desertas,
     a circunstância do que distende as pernas,
     toma essas notas
     cruza as mãos sobre a barriga
     e descobre o voo paralelo
                                                                da ave marinha.

Há outra geometria na qual as paralelas se cruzam. É a traição do pedreiro, do agrimensor, do arquiteto. Uma cartografia carnavalesca em que a latitude beija a latitude. Um universo plano esculpido na esfera. Uma dimensão em que o bico da ave marinha não é o limite que liga horizontes. Um sonho de não ser uma ave marinha ou um pelicano. Somente aquele que abre os braços em busca de sustento.

      Se suas asas fossem treze vezes mais,
     então essas linhas não existiriam,
     técnicas de fuga teriam que ser praticadas
     e não saberiam nada de evoluções no contorno
     para endurecer os músculos.
     O estádio não seria
                                             um pequeno país
     com ar para suor, fadiga e descanso.
     O estádio seria
                                             uma armadilha,
     as corridas, para evitar
     a umidade da bolsa do pelicano.
     Traçaria seu voo e seríamos o horizonte,
     seu olho atroz fixo
                                            no mais lento.

Porém o pelicano não pode mais
do que sonhar essas proporções,
intuir o peixe,
desesperar atrás das redes arrastadas pelos pescadores.
Abaixo os homens, também as mulheres,
uma e outra vez fortalecendo sua saúde,
enquanto estico as pernas
nas arquibancadas vazias
e invejo
       esse
                        voo
                                       paralelo.


O GUERREIRO

ego, et tibi gladium

Não tenho vida a não ser quando as espadas se chocam.
Ezra Pound

I.

Eu sou um homem                                  temeroso e mortal
mas para ti
                                      inimigo sombrio
eu sou a espada

em momentos                     disfruto
ignorando deuses onipotentes que não entendo
ao brincar com seu terror escapo
das intermináveis listas de sacrifício

certas noites não alimento mais rancor
que o do silêncio
então sonho em ser a fibra da corda da lira
vibrar
               fazendo ar
sonho então com um único rosto de mulher
que aguarda por meu canto
escutando sigilosa do outro lado
do tecido que cobre o universo


II.

Eu herdei                                         por causa de minha dor
não por minha raça
a dura estirpe do que parte para a morte
e retorna:
suado                         o peito tenso
pisando a poeira crua do campo de batalha
dei pela conta de meus ódios

não saberás nada do terror do meu corpo
de meus braços nus
impulsionando as lanças que semeio nos teus
nada saberás da saudade que me queima
do grito intenso da casa
do lar acolhedor onde venero
os caminhos de meus antepassados
nada saberás de minha tenra língua
da fruição incomparável dos meus hexâmetros

nada saberás de mim mesmo
estrangeiro miserável
para ti minha voz é a espada
o limite fatal que marca a hora mais terrível
de teus dias


III.

quando odiando o canto monótono
dos bons dias
a sina de meus conhecidos
a sorte de ser inevitavelmente outro
eu me aproximo do porto para embarcar no navio
já levo atado no pescoço o grato talismã
com nome de mulher

então apenas dela eu lamento
              (de ti                         mulher guerreira
              que foste educada em casa
              onde te puseram o coração muito forte
              de ti que te angustias pensando que talvez
              meu corpo jamais regressaria e não terias
              minhas mãos para beijar
              nem meu peito apagado para acendê-lo
              com as pétalas de lírio que aguardaram o inverno rigoroso)

e mesmo não sendo mais do que um homem                     temeroso e mortal
sou o guerreiro
que parte sempre
com a única esperança de ser a espada
              (com o único consolo que
              finalmente existas e esperes
              pela minha última carta)


IV.

o sinal da torre de vigia anuncia o próximo concurso
meus inimigos se abraçam e se confortam
alimentando-se de meu cansaço
mas eu bebo meu suor e renasço em meu sangue
e só conheço a face mais feroz da aurora


V.

eu sou um homem
temeroso e mortal
justo e forte não como um deus
mas como tuas mãos                      meu vizinho
e não é suficiente

beijei o seio da terra
quando me deram dias
cuidando de mim com o fervor do que não deve ir
a lugar algum
o firmamento eterno me dominou
a palavra arcana que eu nunca vou ler
em manuscritos que queimaram desesperadamente
com uma biblioteca perdida

vaguei por uma cidade
buscando a essência última de mim mesmo
gotejando como uma ampulheta
me esgotando
                                 deixando-me para sempre
percorri esta cidade
que meus pais e o destino me forçaram
amar até a fonte
uma cidade que diz por suas árvores
e seus pássaros
                                 ser a minha
e que me aguarda
não importa quão longa seja a viagem
porque seu pó eu fui
e seu pó
                                sem dúvida
                                                 sem pressa
serei


VI.

quando o canal zombeteiro que te deram
enjoar o seu destino
eu estarei te esperando                              amargo inimigo
eu sou o rio que vai te perder no mar
a árvore vitoriosa que renascerá de tuas cinzas
             (porque eu pertenço à dura estirpe
             do que parte para a morte
             e regressa)

e quando o apagado sol de uma manhã
cansar de meu fogo
e alcance meu último verão
e me derrubes
suado e armado
sobre a íntima poeira da batalha
verás cair o guerreiro que te venceu
e minha semente
                                                  não meu sangue
recolherá de meus despojos o que mais brilha
e serei para ti
não mais um homem                      temeroso e mortal
mas sim
                 eternamente
a espada

 

 

 

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