2 Poemas de Rosario Ferré (Porto Rico, 1938-2016)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Na realidade, todas as minhas obras são contos: meus poemas são contos em verso, minha novela, maldito amor, são quatro novelas curtas ou contos largos unidos por vários temas, meus ensaios possuem sempre um fio narrativo que resulta mais interessante que a análise técnica, etc. Gosto de chamar a mim mesma “contista”, ao invés de escritora, precisamente porque o termo é andrógino. Dá no mesmo ser “a contista” ou “o contista”, porém não “a escritora” ou “o escritor”. Entre “escritor” e “escritora” existe ainda hoje um abismo de incompreensão que creio tomará muitos anos mais até que seja sanado, mesmo que já seja alentador pensar ao menos que entre eles já se estabeleceu um diálogo. Entre “contista” e “contista”, contudo, não há diferenças nem incompatibilidades porque ambos vivem, se nutrem, do gozo de contar.

[…]
Há, no entanto, como apontas, muita poesia no que conto. Creio que a poesia, como o conto, tem uma comunhão direta com o mundo do subconsciente; nisto estou de acordo com Cortázar, que acredita que o conto e a poesia conformavam uma atividade não-razoada, enquanto que a novela era uma atividade que dependia da percepção racional do mundo e do discurso polêmico. Os escritores verdadeiramente bons são aqueles que podem combinar a percepção poética do mundo interior com a percepção racional, histórica e política do mundo que nos rodeia, como, por exemplo, Joyce.

[…]
A discussão sobre a literatura feminina nos últimos tempos tem muitos matizes, sem dúvida que alguns deles políticos. Há igualmente alguns homens e mulheres que se deixam levar pelo prejulgamento ou o chauvinismo. Certos homens acusam a luta feminista de ser desnecessária, pois as mulheres já alcançaram um estado de igualdade, são inferiores por natureza e pretender esse estado de igualdade é um desatino. Algumas mulheres, por outro lado, que abrigam ressentimentos inestancáveis contra os homens, tomam a luta feminista como estandarte para desforra e tomam posições igualmente intransigentes. O verdadeiro feminismo luta por uma melhor compreensão entre ambos sexos, assim como por uma maior justiça entre os seres humanos em geral.

[…]
Creio que o número de livros que se escreve ou publica ao largo do tempo tem a ver com as épocas de nossa vida: há certas épocas em que estamos em contato mais direto com esse poderoso caudal de energia que anima a criação. Em tais épocas é quando somos enormemente felizes: somos como pescadores sentados à margem de um rio cheio de peixes, que atiramos seguidamente o anzol na água e os trazemos à luz. Em outras épocas o rio se apequena e os peixes são menos e é necessário sermos pacientes e novamente esperar a chegada do Monso. Para esse regresso vivo; enquanto isto leio, medito, escuto Mozart e me reúno com amigos que também pescam e esperam e que como tu, durante minha recente visita à Califórnia, me levam a passear em Napa Valler e me regalam uma rosa furtada na enredadeira da vida na hora do chá.

ROSARIO FERRÉ
“La poesía de narrar”, entrevista concedida a Miguel Angel Zapata. Revista Códice # 2. California, 1988.


PARA ESCREVER ESTE POEMA

Para escrever este poema
Oh musa! Eu te juro
Que se acumulará o pó nas poltronas.
Que os caldeirões esconderão seu constrangimento
No fundo da panela.
Que o assado vai carbonizar no forno
e os talheres abafarão seu tilintar
na toalha de linho da mesa.
Que as batatas vão multiplicar seus rizomas
E os tomates vão apodrecer na geladeira.
Que o caos da roupa suja acumulará
seu cemitério de fantasmas atados
no fundo da pia da lavanderia.
Que a campainha vai afundar no batente da porta
e o telefone vai tocar com uma longa raiva
sem ninguém responda.
Mas acima de tudo, oh musa!
eu te prometo
que a noite vai segurar meu cérebro em suas mãos
como uma flor que se abre ao universo.


CONTRACANTO

nove anos atrás, o concurso foi adiado.
nove anos atrás que se debatem,
entre o terror do estrondo da guerra
e a ambição incorrupta de glória,
aqueus e troianos, prestes a jazerem imortais
nos braços da morte púrpura,
já ouvem no éter o silvo
que escancara os templos,
a sombra da lança que separa
o quadril do ombro e o braço das costas,
o canto da flecha que atravessa
o pescoço vigoroso
para aparecer, língua de prata, entre os dentes.
pisando na poeira da fama,
eles deixam no nevoeiro indizível e no rastro
de seus futuros gestos e ações.
convocada por Príamo e seus sábios, Helena
pisa a torre tempestuosa com pés trêmulos
(os anciãos sentados em uma fileira como
cigarras arengam às tropas e mostram-lhe,
de suas alturas, a terrível disposição dos mundos).
De costas para o mar largo, aquela estrada que cega
os incautos com seu pó de diamante inconstante,
os gregos descansam;
as costas para as torres sonoras.
na divina figueira e nos nobres portões, os troianos
descansam, tudo é calmo, tudo é paz.
indolentes com suas armas elaboradas, as legiões observam
os reflexos das papoulas,
ainda limpas de todas as manchas.
uma razão exige tanta glória prometida,
uma razão que limpa e justifica,
como um fio de fogo, a trama aterrorizante
que ali se desenrola:
um rosto cuja beleza incita
aquele cumprimento das flechas
que tecem no campo de batalha,
inevitáveis mesmo para os invisíveis.
um rosto esquecido ao ponto do esquecimento,
que arraste em sua seda mortífera de prata
a maré de outros rostos já opacos,
das algemas já quase transparentes, curvadas
sobre o fogo da lareira,
dos quartos em ruínas e das eras estéreis,
dos lentos arados conduzidos por fantasmas
que abrem sulcos ao ritmo da lua
para semear o pranto.
um rosto que não come pão nem bebe vinho,
um rosto abandonado há séculos pelo sangue
e pelo sal, um rosto incorruptível,
indiferente ao tempo que tece sobre ele
a filigrana dos fios da vida,
um rosto de imortal.
Helena é essa cara.
com verões de ouro,
Homero e seus aedos o inventaram,
o cego que ainda inclina
sua canção sobre o sopro aterrorizante de sua lira.
à beira do abismo e da glória,
aqueus e troianos a veem brilhar
sobre as tropas.
escondida atrás de sua máscara dourada,
Helena os encara de volta;
a seus pés, o vaidoso Páris
reveste de leopardo suas delicadas carnes
e exige que lhe seja devolvido
o usufruto do rubi avermelhado de seu sexo.
Menelau, seu antigo dono,
move sua testa arrogante para o campo aberto,
e ruge sua honra de dor ao perder
seus quadris, seios e braços,
ressoando como odres de riqueza.
o vento arde e as paredes estremecem:
humilhada pelos acontecimentos que presencia,
Helena eclipsa o rosto entre as dobras
de seu manto escarlate de fogo
e apostrofando a si mesma com um sotaque dolorido
exclama o seguinte:

“Ó Helena,
aquela que nasceu entre as Asas da Leda branca
não embalsame Nêmesis, ao contemplar o teu destino,
foge hoje com medo da sua prole!
que o que você observa aqui o convença
de que de um lado ou do outro
de seu escuro coração contrito
voam as duas faces da mesma morte!
o pálido Páris, a quem você deu uma doce vida em penhor,
e Menelau, o Átrida de Ouro,
revelam a você hoje a terrível verdade
de sua existência já decadente e arcadiana:
daquele que você era a consumada cortesã
que governa, a cama exorbitante, seu destino,
entre as telas retorcidas do delírio;
de outro, você foi o hábil prefeito
daquele ouro que o avarento tálamo nupcial
acumula em gotas lentas.
mas eis que, nesta hora
em que tudo compreendes e pressentes,
o remorso de ter sido o que foste
e a saudade de não continuar a ser,
adivinhais à beira deste horizonte
a certeza de um terceiro tormento;
aqueus e troianos, a nata nobre
da juventude ancestral, os jovens
altos como freixos, a descendência de reis
e destinos, os tenros como veados e os príncipes
marrons da Ásia, perfumados com especiarias,
os golfinhos herdeiros de diademas,
os primeiros nascidos e filhos
bastardos da feliz Argolis,
os machos consumados no ávido
exercício da guerra, os foragidos de ferro
maduros e experientes,
aqueles com crinas compridas que arrastam no pó
seu desdém pela derrota fiel, que vieram
em seus navios vinolentos para saquear Tróia
e enviuvar suas ruas, e os que hoje
defendem Tróia, erguendo o apito de diamante
dos seus arcos sobre as altas torres,
os que hoje cobrem o Escamandro de mar a mar
antes de o tingir de púrpura a sua areia milenar,
os que a vossos pés rugem, agitam,
fervem, em torno das flores da glória,
pretendem que em seu nome hoje brilhem
as estátuas, atiradas ao campo,
quando destilam sangue;
que por seu amor a terra dura demarque
as entranhas com a carne dos heróis;
que em tua memória o galgo, o javali e o lobo
dilacerem, no redemoinho dos seus pescoços,
as memórias de outros homens e de outros tempos;
que as fúrias pavorosas se desloquem
com absoluta majestade sobre as ruas
de sangue longo, e zumbam, sobre os corpos derramados,
a tua vitória mórbida.
ai de ti, Argiva Helena ou Helena de Tróia,
porque hoje o universo te exige
sua rainha feroz!”

na décima hora do décimo ano,
a trégua finalmente cessa.
aqueus e troianos brilham
na planície álgida, vestidos de bronze reluzente.
batem no alto a alegria das espadas
e finalmente se entregaram ao gozo da guerra
(sentados em uma fileira os anciãos
pronunciam sua sentença: aqui está um rosto
que valerá bem a pena uma guerra).
no alto da torre, Helena
traz a prata de sua adaga até o pescoço delicado:
dele rola a primeira rosa
de sangue que se derrama em Tróia.
ninguém vê, ninguém ouve.
indiferente ao que Homer cantaria em seu nome,
a escuridão cobriu seu rosto.

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