3 Poemas de Eugenio Montejo (Venezuela, 1938-2008)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Cada poema representa para mim uma unidade psíquica, uma mônada de sentimento e significado. Naturalmente, nem todos alcançam essa unidade de que falo, por isto muitos rascunhos se desfazem ao ordenar um manuscrito. Prefiro falar de conjunto de poemas ou livros, que são coleções de poemas, ou de textos que aspiram a ser poemas, mas, em todo caso, aspectos fragmentários do livro, que seria a reunião definitiva do que se deixa, se se deixa algo. Em meu caso, essas coleções de poemas não tiveram, ao menos até aqui, uma unidade serial, ao modo de um longo poema estruturado em vários cantos. São composições unidas por uma proximidade de motivos e estilo. A ideia de uma estruturação cingida a propósito de um tema único me iludiu ultimamente, porém careço de tempo para dar-lhe forma. Sempre me vêm estes versos de Pasolini: “Para se fazer um poema é necessário tempo. / Horas e horas de solidão / são a única maneira / de dar estilo ao caos. // Sofro por meu século que tira o pão do pobre / e a paz do poeta”.

[…]
A poesia é a última religião que nos resta. Quando digo poesia, digo arte em geral, criação artística. Não sei como, por exemplo, se pode pintar algo válido sem ter um enraizamento religioso. Me refiro deliberadamente à pintura porque, entre as artes, resulta hoje a mais exposta à voracidade mercantil. Grande parte do mal-estar do homem contemporâneo se origina, ao meu ver, no fato de pertencer a um mundo modelado por uma religião da pobreza (Cristo é o mais pobre e humilde dos homens), e comprovar, no entanto, que não há civilização mais propensa ao lucro que a nossa. Isto produz sentimentos autopunitivos e condutas esquizoides. Seria necessário assumir por inteiro a busca da humildade ou então, se não é possível, desenterrar o culto dos deuses do ouro, o culto de Mammon, para nos aproximarmos da harmonia. Assim sendo, quando me refiro à arte e a seu enraizamento religioso, não estou pensando, claro está, somente em um sentido cristão, mas sim no sentido mais amplo e antigo da palavra.

[…]
Quem se aproximasse do horizonte de nossa poesia hispano-americana ao começar o século, pode constatar uma impressionante coerência de objetivos e buscas. Presidida por Darío, a constelação de nossos modernistas – nossos melodiosos simbolistas – se fazia sentir ao largo do continente, e isto em um tempo em que não existiam nem o rádio nem a televisão. Suas colaborações se reproduziam na imprensa de todas as nossas províncias, de país em país. Pois bem, quem se aproxime em nossos dias não pode encontrar um panorama mais diverso e, para dizê-lo totalmente, mais desorientado. Intelectualismo neurótico por um lado, falsa falação coloquial por outro, quando não tagarelice política. Há exceções, é verdade, porém como sempre a esperança aposta pelo lado do imprevisto, daqueles que secretamente agora trabalham na poesia que abrirá o terceiro milênio.

EUGENIO MONTEJO, “La poesía es la última religión que nos queda”, entrevista concedida a Rafael Arráiz Lucca, incluída em Grabados. Academia Nacional de la Historia. Caracas, 1989.


QUEM?

Quem tanto canta pela voz do pássaro?
Quem nos sussurra oculto entre seu sangue?
Aqui próximo, ao ouvido da árvore e do mundo,
posso, sem que me veja, olhar suas plumas,
ouvir quando se desprende no ar
desde si próprio e cai fora do tempo,
muito além de sua matéria sutil.
Porém não sei quem canta nele, não vejo ninguém,
somente um ponto de sombras e asas vivas
que vão arqueando o corpo e lhe transbordam
até que nos tenha envolvido todo o visível
em uma esfera nítida, translúcida, impalpável.


ADEUS AO SÉCULO XX

A Alvaro Mutis

Cruzo a rua Marx, a rua Freud;
ando por uma margem deste século,
devagar, insone, caviloso,
espia ad honorem de algum reino gótico,
recolhendo vogais caídas, pequenos calhaus
tatuados de rumor infinito.
A linha de Mondrian frente a meus olhos
vai cortando a noite em sombras retas
agora que já não cabe mais solidão
nas paredes de vidro.
Cruzo a rua Mao, a rua Stalin;
olho o instante onde morre um milênio
e outro desponta seu terrestre domínio.
Meu século vertical e cheio de teorias…
Meu século com suas guerras, seus pós-guerras
e seu tambor de Hitler lá longe,
entre sangue e abismo.
Prossigo entre as pedras dos velhos subúrbios
por um trago, por um pouco de jazz,
contemplando os deuses que dormem dissolvidos
na serradura dos bares,
enquanto decifro seus nomes a cada passo
e sigo meu caminho.


NO PAVILHÃO DOS PREMATUROS

I

Caíram de algum salto de Deus,
sem outro grito que o desejo de ver o mundo,
de nos acompanhar no tempo da terra.
Caíram de si mesmos, de suas sombras;
algo que viram os fez anteciparem-se,
algo invisível a nossos olhos, salvo em sonhos,
porém que nos ilumina por dentro e fora,
incólume ao curso das horas e dos astros.

II

Chegaram sozinhos ou veio alguém com eles,
alguém, além da vida,
como impalpável raiz, como substância?
Ao longe se veem árvores mudas
e luzes pálidas que vertem
sobre os muros seus enigmas intactos.
As janelas estão cheias de noite
e a noite de névoas indecifráveis.
Se alguém os trouxe, não restam rastros;
pode estar nas lâmpadas, e é sombra,
no silêncio, e é palavra.
De muito longe veio o lume de seu grito,
prolongando o relâmpago que somos
nesta terra onde ninguém sabe nada.

III

Os pais velam em um silêncio branco
e ficam absortos olhando em seus corpos
algo remoto, um acúmulo de luz que se amontoa,
uma constelação que nasce.
Podem apalpar seus rostos, porém estão longe;
tocam seus pés, suas mãos, sem alcançá-los;
seus corações pulsam ainda fora do mundo,
à velocidade de horas futuras,
em outro tempo, em um país longínquo…

IV

E as cegonhas? E os sons secos
quando sacodem o bico das cegonhas?
Já ninguém recorda sua fábula,
nenhuma pode trazer-nos o que nasce.
Apenas estas lâmpadas hieráticas nos restam
que noite a noite se acendem e se apagam
com obstinada rotina tênue.
Porém não voam,
jamais viram suas asas no ar.
São apenas lâmpadas.
E quando se derramam cresce uma névoa fria
como as plumas que saem de um espelho
e arrasta o vento ao fundo da rua.

V

Me inclino a ver em uns olhos
recém abertos, cheios de outro mundo,
seu primeiro grito diante do mistério.
Ao fundo surge de imediato o rosto meu,
cinquenta anos atrás, com meus pais ao redor,
enquanto a noite cai sobre a sala
com um opaco sussurro de enfermeiras…
Não sei por onde entra o ontem. Minha poesia
está escrita no assombro desses olhos;
posso ler cada palavra em suas retinas,
com minhas horas de lâmpada, minhas viagens,
linha por linha sem que falte uma letra.

VI

As mães entram e saem da névoa
que a insônia acumula entre suas pálpebras.
O tempo é quase táctil ante sua angústia;
contam as horas como gotas de sangue.
A noite as envolve e não adormecem,
vão ficando mudas como pedras
à margem de um rio de olhos velozes
que não termina nunca de passar,
porém seu grito retumba em outra parte.

VII

Anteciparam-se ao voo de sua sombra,
aos relógios que guardam o futuro.
Estará aqui o que sonharam, o que sonham?
Que reino buscam para chegarem tão rapidamente?
Ainda não respiram sem ajuda,
o pulso se acelera inatingível,
e em sua pele restam marcas de outros astros,
machas de Sírio, sombras de Saturno,
luas remotas que vemos em tatuagens.
Anteciparam-se tanto que esta noite,
enquanto ao lado de seu sonho vou e venho,
temo ser um fantasma falando só,
alguém que e pó e esteve aqui e não sabe
onde termina a redondeza do tempo.

VIII

Impetuosos, velozes, a tempo ou não,
ainda tilintante seu lume de centelha,
já estão aqui após a longa viagem.
Nenhum ignora antes de abrir os olhos
que veio à terra para estar de guarda.
Por mais que dure a noite nas ameias
e friccione o vento seus ecos nos muros,
ao nascer trazemos tão somente uma vida:
– nossa sombra é a única muralha.
Todo o resto, até o fim, é a vigília
e o grito de alto! que nos ouvem as horas
sem que nenhuma se detenha um instante.

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