Curadoria e tradução de Floriano Martins
Gastón Baquero (Cuba, 1914-Espanha, 1997). Estudou Engenharia Agrícola e doutorou-se em Ciências Naturais. Colaborou com várias revistas; como jornalista no Diario de La Marina (onde se tornou editor-chefe), a revista Clavileño, da qual foi o fundador, e colaborou com a Verbum. Publicou seus poemas em Espuela de Plata e Orígenes, onde colaboraram José Lezama Lima, Virgilio Piñera, Cintio Vitier e Eliseo Diego. Nessa época publicou os livros de poesia: Palabras escritas en la arena por un inocente, Saúl sobre su espada e Testamento del pez. Após o triunfo da Revolução Cubana em 1959, exilou-se na Espanha franquista nos anos 1960, onde sua poesia se transformou radicalmente em Poemas escritos en España (1960), Memorial de un testigo (1966), Magias e invenciones (1984) y Poemas invisibles (1991). Trabalhou no Instituto de Cultura Hispânica, na Escola de Jornalismo e na Rádio Exterior de España. Neste país teve muitas dificuldades e, embora tenha desenvolvido o melhor de sua poesia, recebeu o reconhecimento apenas tardiamente, graças à homenagem internacional que lhe foi prestada pela Cátedra de Poética Fray Luis de León da Pontifícia Universidade de Salamanca, em 1993. Em 1995, publicou sua Poesía completa, bem como uma seleção de seus ensaios literários (ambos volumes organizados por Alfredo Pérez Alencart e Alfonso Ortega Carmona). Sua obra foi finalmente publicada em Cuba, já que em 2001 foi autorizada a publicação de uma antologia poética, La patria sonora de los frutos (Editorial Letras cubanas).
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Os poemas de Gastón Baquero se baseiam nos súbitos instantes de seus veios de inspiração, criando com eles as imagens com as quais nos deixa ver como a vida cotidiana possui palavras para desfrutar o sabor do conhecimento, para saborear a polpa carnuda da realidade, para saber que é possível abrir nossos instintos nas raízes da utopia. Assim, seu universo poético nos oferece o dom da presença da vida, o dom de reconhecê-la nas formas e nos objetos que a fazem e nos fazem. São poemas forjados com imagens exultantes que se sucedem como um leque desdobrado e onde a vida revela momentos breves e únicos. Um leque onde acontece a memorável libido do andamento.
OMAR CASTILLO
O GATO PESSOAL DO CONDE CLAGLIOSTRO
Eu tive um gato chamado Tamerlane.
Ele foi alimentado apenas com poemas de Emily Dickinson,
e melodias de Schubert.
Viajava comigo: em Paris
serviram-no inutilmente, em pequenas toalhas de renda Richelieu,
chocolates feitos para ele pela própria Madame Sevigné,
mas ele rejeitou tudo,
com o gesto de um imperador romano
depois de uma noite de orgia.
Porque ele só queria mastigar,
folha por folha, linha por linha,
antigas edições dos poemas de Emily Dickinson,
e ouvir sem parar,
as melodias de Schubert.
(Conhecemos em Munique, em uma pensão alemã,
a Katherine Mansfield, ela,
que era toda a delicadeza no mundo,
tocava suavemente em seu cello, para Tamerlane,
melodias de Schubert).
Tamerlane afastou-se da forma mais adequada:
Estávamos caminhando por Amsterdã, especificamente pelo bairro judeu de Amsterdã,
e ao passar diante da sinagoga mais arcaica da cidade,
Tamerlane parou, olhou para mim com um brilho visível de ternura em seus olhos,
e pulou naquele templo escuro.
Desde então, todos os anos
mando de presente para a velha sinagoga de Amsterdã,
um grupo de poemas.
Poemas que foram lamentados, em Amherst, um dia,
Pela melancólica jovem chamada Emily,
Emily, Tamerlane, Dickinson.
O HOMEM FALA SOBRE SUAS VIDAS ANTERIORES
Quando eu era um pequeno peixe,
quando conhecia apenas as águas do belo mar,
e lembrava muito vagamente de ter sido
uma canforeira nas margens do Caroní,
eu era feliz.
Mais tarde, quando meu destino me fez
ressurgir encarnado na lentidão de um leopardo,
vivi alguns claros anos de vigor e júbilo,
conheci as paisagens perfumadas pela flor da bétula,
e era feliz.
E durante todo o tempo em que fui
cavalo de um guerreiro na Etiópia,
após ter sido o tenro bisavô de um albatroz,
e vir de longe me despedindo do meu invólucro
de cascavel,
eu era feliz.
Mas somente quando um dia
acordei choramingando sob a pele de uma criança,
comecei a recordar com dor as paisagens perdidas,
chorei por alguns perfumes da minha selva, e pela fumaça
das madeiras balsâmicas do Hindustão.
E sob a pele humana
já sofri tanto, e tanto e tanto,
que apenas espero passar, para dissolver novamente,
reaparecer como um pequeno peixe,
como uma árvore nas margens do Caroní,
como um leopardo escalando a bétula,
ou como o ancestral de um pássaro altivo,
ou como o sono tranquilo da serpente junto ao rio,
ou assim ou assim, ou por que não?
como uma corda de violão onde alguém,
quem quer que seja,
infinitamente toca uma dança que anima
de igual maneira a lua e o sol.
PRELÚDIO PARA UMA MÁSCARA
O orvalho decora os restos de um naufrágio
Onde apenas a morte pulsa fracamente.
As estrelas não balançam mais seus cabelos macios
Na face invisível que enfeita o orvalho.
Sem cor, uma memória avança pela morte
Que aprisiona em suas asas a forma que meu corpo
Terá quando chegar a hora de a morte permanecer
Enterrada no rosto que enfeita o orvalho.
Eu não quero morrer amanhã ou nunca,
Eu só quero me tornar fruto de outra estrela;
Saber como os filhos de Saturno sonham
E como a terra brilha coberta de orvalho.
Algo visível e certo me arrasta pela alma
Até uma vasta varanda onde nada aparece.
Ali fico imóvel ouvindo que morro;
Pressentindo o rosto que enfeita o orvalho.
A árvore que minha sombra levanta todos os dias
Sedenta pelos céus, devora as suas raízes;
Bate nas portas brancas do distante naufrágio
E floresce na face que enfeita o orvalho.
Com o sol que chora a morte que um dia
Fará com que roles escuro sob a terra,
De repente, ilumina minha próxima estadia
Onde deslumbra o rosto que enfeita o orvalho.
Eu não sou agora senão um corpo convidado
À dança que as formas culminam na morte.
Onde quer que eu me esconda ou negue
Surge radiante a face que enfeita o orvalho.
Então me reconheço como um hóspede que chega
a uma estação estranha para passar alguns dias.
Minha pátria se despe serenamente nas brumas:
Sua extensão é a face que enfeita o orvalho.
Não importa que a morte seja uma neve eterna
Que a forma no tempo aprisiona e exige.
Um vale silencioso floresce em minha memória,
E sinto que meu rosto é enfeitado pelo orvalho.