Curadoria e tradução de Floriano Martins
Herib Campos Cervera (1905-1953). Poeta e jornalista paraguaio. Em 1948, deixou seu país após um golpe de Estado ali ocorrido. Ele foi vítima da dura repressão que afetou a oposição ao governo do Partido Colorado. Daí até a morte viveu em Buenos Aires (Argentina), onde publicou seu livro Ceniza redimida (1950). Este livro, junto com o póstumo Hombre secreto (1966), fez dele o poeta mais importante da geração paraguaia de 1940, decisivo para que a lírica superasse a tradição modernista em seu país e se aproximasse de algumas experiências de Vanguarda. A nostalgia da sua terra e as dolorosas experiências do exílio alimentaram frequentemente os seus versos. Seu trabalho constitui um exemplo notável de preocupações existenciais que se generalizaram após a Segunda Guerra Mundial; em Campos Cervera, essas inquietações se materializaram em uma vivência íntima do absurdo da condição humana, e também, às vezes, em uma poesia da proximidade ou do grito, em que a angústia está ligada às suas preocupações sociais.
PALAVRAS PARA NOMEAR OS MEUS
O homem cai na terra, mas seu
tempo cai na eternidade.
Federico:
eu te vi aqui, sentado, sobre uma pedra negra,
diante do mar que amansava seu furor na praia,
enquanto o sol polia teu perfil de cigano
sobre o redemoinho limbo da tarde dormida.
Eu te vi assim: sentado, com a camisa aberta
calcinando teu peito polido de marinheiro;
apagando as vozes de teu violão ardente
com o grito opaco de um punhado de areia.
Verde cigano nosso que amadureceu a morte
quando passarem mil anos, nesta mesma pedra,
a mesma areia amarga que ergueu a tua mão
ainda estará chorando teu nome amanhecido.
Quando te ajoelhaste sobre a tua terra
o mar, que arejou teu peito com seu hálito de iodo,
calou… Os caracóis rumorosos de música
de imediato apagaram seus cânticos milenares.
Grãos de veludo da areia marítima;
caminhos dos ventos que levam os sonhos;
noites enlouquecidos por júbilos de mundos;
asas que trazem e levam sua música acesa;
tudo: vento e areia; mundos e asas e noites
choram auroras de sangue sobre teu nome claro.
Federico: os anos secaram as tuas carnes;
nelas penetraram os vermes da terra;
porém a tua voz remota, poderosa de símbolos,
feito o mar, não está morta…
Entre um voo de albatroz e um tumulto de estrelas,
faz com que retorne ao infinito a tua festa de canções.
Quando passarem mil anos, nesta mesma pedra
que destacou a tua estampa sobre o telão atlântico,
eu ainda estarei esperando que outra música análoga
perfure o labirinto de cal de meus ouvidos.
HOMEM DIANTE DO MAR
É como eu: eu o sinto com minha angústia e meu sangue,
belo de tristeza, vai ao encontro do mar,
para que o Sol e o Vento o arejem de agonia.
Paz na fronte quieta; o coração, em ruínas;
quer seguir vivendo para morrer mais.
É como eu: eu o vejo com meus olhos perdidos;
também busca o amparo da noite marinha;
também leva a parábola rompida de um voo
sobre seu antigo coração.
Vai, como eu, vestido de solidão noturna.
as duas mãos estendidas para o rumor oceânico,
pedindo ao tempo do mar que o liberte
desse golpe de ondas sem trégua que sacode
seu velho coração, cheio de sombras.
É como eu: eu sinto como se fosse minha
a sua estampa, modelada pelo furor eterno
de seu mar interior.
Belo de tristeza,
está tentando – em vão – não queimar a areia
com o ácido amargo de suas lágrimas.
É como eu: eu sinto que se fosse meu
seu velho coração, cheio de sombras…
TEU NOME SOBRE O MURO
Para o nome e o homem Paul Éluard. Para o homem infinito que viveu nele. Para a vida sem término que vive em seu nome.
I.
Como fazer para te ver
deitado na terra, de hoje e para sempre?
Desde qual primavera de flores infinitas
estarás olhando para nós com teus olhos de luz
e teu peito
de altura capital?
Ontem mesmo estava movendo entre vertigens
de luto e humilhações todo o ar da França;
estava todo repleto de anjos transparentes,
todo pleno de Pablos combatentes.
O da Espanha estava lá, vestido de orvalho,
com sua pólvora amarga, com seus limões verdes;
com seus rostos divididos
e seus metais profundamente fundidos na argila.
Ali estava o da América, nosso Pablo mais alto,
todo crucificado de mineral e Chile;
e estavas tu, Paul Éluard,
o homem total, francês do universo,
o mais Pablo de todos.
E falavas e cada um de teus pequenos pássaros
cruzava o horizonte e acendia uma estrela
e a noite do homem se ajoelhava e morria,
diante do fogo magnético de tua luz boreal.
II.
As laranjeiras da Espanha estavam florescendo,
flores de sangue antigo;
e tu, da doce medida de teu peito,
arrancaste um rígido rifle de milícia;
um rifle infinito de balas infinitas,
que matava a morte.
E outro dia quando os prados verdes
cresciam em furiosas colheitas de ensanguentados
cereais
quando o gás e as bombas e a fumaça e o urânio
queimaram todo o pólen e as folhas e o caule
da madeira definitiva dos filhos de Deus,
tu, Paul Éluard,
com teus olhos-Éluard e com tua voz-Eluard,
te aproximaste do estrago.
E quando os anjos da vingança
pediram a tua cota;
quando reivindicaram teus olhos e testas
e as gargantas mudas,
e as pobres garras carbonizadas,
e as metralhadoras e os gritos
dos injustiçados por tua mão,
apontaste o muro; mil muros;
todos os muros de Paris e da França
e do mundo.
E ali estava tua assinatura: naquele dia te chamavas:
Éluard-la libertad.
III.
Ontem, uma criança, filha clara da madrugada,
Estava procurando por ti, Paul Éluard:
te procurava, para falar de amor.
Era um dia de flores perenes, de perfumes cegos,
em que ninguém deveria morrer.
Eu batia à tua porta, sacudindo os arcos de tua
jardineira;
com picaretas ingênuas provava tuas fechaduras firmes
e examinava as rachaduras de tuas paredes,
procurando por ti, perguntando por ti.
Alguém havia passado
uma pequena nota com uma mensagem tua,
escrita em minúsculas azuis com pulso de febre:
Se procuras o Amor, procuras o Paul Eluar…
Recordo, alguns anos atrás, quando ainda em minha pátria,
meu Paraguai de sonhos, açúcar e agonia,
vimos a manhã tornar-se trevas…
Recordo quando o ar derramava sangue
recentemente espalhado na terra em chamas,
de Oradour e de Lídice…
Recordo o que estavas fazendo
porque quando deitávamos nossas cabeças no travesseiro,
os ecos confusos nos alcançavam
com os estalos de toras e esqueletos
explodindo através do fogo…
Porém na noite cega
alguém que não dormia ergueu sua lâmpada,
e a luz carinhosa do óleo proibido
iluminou as imensas palavras:
Allons, enfants de la Patrie,
le jour de gloire est arrivé…
Esse pastor noturno da liberdade,
Era a dignidade do homem e se chamava:
Paul Éluard.