Lourdes Espinola (Paraguai, 1954)

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Curadoria e tradução de Floriano Martins

Acredito que o ser humano é integral e que o poeta tem que sê-lo, para mim a poesia força a decantação a encontrar uma expressão pura e honesta. Pessoalmente, foco no prazer de fazer poesia, acredito que quando o poeta está atento ao leitor, ao editor, ou para ganhar um prêmio, ele se afasta do prazer de escrever e da essência do porquê ele escreve. No meu caso, aquele processo interno que produz um poema e que aquela voz poética seja coerente é muito importante. Para mim, escrever poesia tem como resultado – embora não seja intencional e por não ser intencional, é mais real – criar uma obra. Criar uma obra significa que meus livros têm uma conexão e uma organicidade porque esta está ligada ao fluxo do inconsciente e também associada a reflexões importantes para minha vida naquele momento; assim, há uma conexão entre trabalho e vida que se reflete na poesia. Às vezes vejo que minha escrita está se transformando, minha poesia e meus instrumentos e também a linguagem que se apura cada vez mais dos adjetivos. Tento criar imagens e sons para que a poesia seja mais essencial. Para mim, o território da poesia é o território seguro; na minha experiência é um ato de plena saúde, pois sinto prazer na performance poética. Devo admitir que a palavra no campo da literatura tem uma função curativa, poetizar é para mim uma forma de libertação e uma forma de cura. Considero que uma obra poética só se sustenta quando é honesta e coerente e quando o tempo assim o decide. A energia criativa do poema, considero a evidência de uma sensação de estar vivo, de estar alerta; os sentidos transmitem sinais e os sinais são incorporados ao ato criativo. Posso dizer que a criação e minha poesia vêm do amor e que também são uma equidistância entre a dor e a felicidade, essa objetivação artística não é algo passivo e sim ativo, pois estou, como escritora, no centro da criação que é a fonte de minha arte. Sinto a necessidade de um trabalho entrelaçado onde não seja possível ignorar um livro sem perder parte das pistas do desenvolvimento criativo poético. Meu trabalho é dirigido pelo fio da linguagem, esse instrumento que procuro seja claro, puro e preciso para que a ideia que envolvo seja tão nobre em sua roupagem quanto o que ela tenta expressar. O som, o ritmo do poema e o movimento é algo que procuro com devoção. O espaço da escrita é para mim um espaço consagrado onde também sinto uma responsabilidade ética procurando construir um universo um pouco melhor. Não assumo essa responsabilidade como um peso ou uma pressão, mas como um guia para poder trilhar um caminho. No caminho vital da poesia, sou guiado pelo princípio expresso na carta de São Paulo aos Coríntios: Siga o amor e busque os dons espirituais.

LOURDES ESPÍNOLA
“El proceso poético creativo”, Esferas del tiempo, 2020.


[VAMOS CONSIDERAR TODAS AS COISAS]

Vamos considerar todas as coisas:
teu olhar encharcado de outras noites,
tuas mãos de semente
a ponto de serem plantadas em minhas costas,
e sobretudo teu fogo, que cria tanto
e temo que me destrua;
e também
a morte pontual do amor,
como já me disseste.
Porém, melhor não considerarmos nada
e
que estendas
o ramalhete de nervos de meu tato,
apenas para que Deus
não me encontre adormecida.


[ESTENDO A MEMÓRIA]

Estendo a memória
até tocar a tua língua,
onde outra boca
apaga o meu tato.
Na solidão
que cai vertical nesta cama
espero, em silenciosa umidade,
essa chamada, que foi
que não será,
mas que espero.
Eu me arrependo do esquecido banquete
de teu corpo estendido
nessa cama branca
que ficou intacta
apesar do desejos,
apesar da noite,
do beijo,
de tuas mãos.


[BUSCAR A TUA BÚSSOLA]

Buscar a tua bússola,
ser taça, fruto, receptáculo,
som do amor
que se reúne na água e na terra.
Tardias madrugadas
de tecer tua boca em meu travesseiro
(entre a trança que recordo
e a que esqueço).
Desperto asseada,
fecunda hélice perene:
esta espiral aquática
que sempre posterga tua chamada.
Jogo de tímpano e som
carregado de umidade e colinas,
de língua de desejo
ou tensa funda.
Sou a tíbia umidade
que não regressa,
sou o desejo que espera silencioso,
sou a outra que desperta a aurora.


IN MEMORIAM

Albert Camus

Meursault com o sol nos olhos,
e a humanidade.
Confrontação,
dicotomia,
tudo desde o distante prisma:
o suicídio e o resto.
Impossibilidade,
indiferença,
mutilação de medos, culpa, sonhos:
rito
diário e preciso.
O mesmo final, porém não mais além,
e o dia tão radiante.


[ÀS VEZES EM SILÊNCIO]

Às vezes em silêncio
eu te nomeio com a urgência de meu desespero.
Minha roupa são minhas ânsias
e estão atadas à minha pele,
com essa falta de tudo o que preenches.
Respiro em teus papéis,
à beira de tua cama,
como um invisível nu que a sombra acompanha.
Hoje sentes na tarde
que os espelhos transparentes
te devolvem meu rosto.
Minhas pupilas cansadas
embaladas em tuas mãos
mordem cada dedo teu,
vedados como abismos de frutos proibidos.
Fecho a porta,
grito,
chamando esse recanto
povoado de tua seiva.

IN MEMORIAM

Sor Juana Inés de la Cruz

E ser e não.
Ser mulher,
com manuscritos de visões internas
nomeando a experiência.
Traduzes línguas de tragédia,
mulher se abrindo
como ostra
que dentro
leva seu cárcere.
O resto: solidão,
verbo e pó
mastigando os anos.


DUALIDADES VITAIS

Dualidades vitais.
Talvez desespero.
Dedicar a vida
a estranhas metas.
Diante da ternura adiada,
Os êxitos riem
em ritual cansado,
quando se desejava apenas
um conhecido porto agudo e silencioso
e respirar verdadeiramente
em teu fôlego nu.

1 comentário em “Lourdes Espinola (Paraguai, 1954)”

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