Curadoria e tradução de Floriano Martins
Quais são seus poetas favoritos e por quê?
Minha lista de poetas favoritos está sempre mudando. Os que não consigo deixar de ler neste momento são: Idea Vilariño pela sua profunda doçura e minimalismo, Raymond Queaneau, um dos fundadores da escola de Oulipo e autor de 99 exercícios de estilo, pego-me a ler a sua obra com muito cuidado para praticar a minha escrita. Ele argumentou que a escrita deve ser praticada com dedicação como um instrumento e eu não poderia estar mais de acordo. Entre as mais contemporâneas, gosto muito de ler Tilsa Otta, Horacio Warpola, Fernanda Laguna e Jessica Freudenthal.
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Em 2017 você publicou sua primeira coleção de poemas, Fiesta equivocada. O que o motivou a escrever esse livro?
Fiesta equivocada foi fruto da vontade de colaborar com minha amiga fotógrafa Aino Siroiinen, da Finlândia. Eu a conheci em um intercâmbio universitário que fiz na França e quando ambas retornamos aos nossos respectivos países, enviei-lhe meus textos porque ela estava aprendendo um pouco de espanhol. Escrevi os textos que compõem o livro entre meus 17 e 23 anos com processos de edição intermediários, estava pensando em fazer um fanzine ou um blog para publicá-los, mas Aino me ofereceu suas fotos e decidi autopublicá-lo como um livro com o selo Torre de Papel, uma editora independente que criámos com o meu irmão mais velho, mas que por razões financeiras não pudemos dar continuidade. Fiesta equivocada tem uma estética muito pop e ingênua, mas ao mesmo tempo aborda temas como assédio de rua, machismo, depressão e suicídio na perspectiva do adolescente. Nesse sentido, me pareceu interessante compartilhar essa perspectiva que muitas vezes é ignorada ou ridicularizada, ainda mais quando você é uma mulher adolescente.
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Sabemos que além de escritora, és gestora do projeto cultural CybeElfa. Como surgiu este projeto e em que consiste?
CyberElfa passou por vários estágios. Tudo começou como uma conta simples no Instagram, onde postei memes de que gostei. Então, junto com meu amigo Noni que é produtor musical, decidimos usar o nome CyberElfa para criar eventos que combinam música eletrônica dançante com poesia. A intenção foi retirar a leitura de poesia dos habituais espaços solenes e levá-la a um público jovem que não espera encontrar poesia numa festa. Seguimos então para a produção de fanzines com temática feminista e durante a quarentena surgiu a ideia de fazer vídeos de poesia com montagens de imagens de anime (animação japonesa). O projeto começou com alguns amigos e poetas que compartilham o gosto por anime e as pessoas aderiram. A ideia é dar outra leitura e dimensão aos poemas, além de divulgar a obra de poetas emergentes.
LUCÍA CARVALHO // Janeiro de 2021. Fragmentos de uma entrevista concedida a Julián Álvarez Sansone.
CABOS E RUÍDOS
Esses dias parecem horas
as horas parecem minutos
Interrompidos
por cristais
Esse dia parece uma imagem
Interrompida
pela estática
Interrompida
por pixels
Todos os dias parecem mensagens
Interrompidas
por carinhas formadas com sinais de
pontuação
Anunciadas por vibração
O presente parece uma viagem em micro
Interrompida
por buracos na estrada
por vidros rasgando os pneus
E parecemos uma chamada telefônica
Interrompida
por um correio de voz
por um corte de energia
Os dias queimam devagar
e as horas são purificadas
As horas se desintegram
Eu fico olhando para o fogo
enquanto ficas na chamada
entre cabos e ruídos
BANHO-MARIA
Em mim ela afogou uma menina e
em mim surge uma velha
em direção a ela dia após dia como um peixe
terrível.
O espelho, Sylvia Plath
Meus ossos não são fortes
Meus ossos me traem
Não querem sustentar este organismo
se recusam a me manter de pé
Eu lhes peço mais um dia
porém esses ossos se transformam em pó
E este estômago comprime
não suporta uma má notícia
não digere uma salsicha
E esses olhos não querem mais ver
E me pedem que incline a cabeça
que dê alguns passos para dentro que esteja sempre perto
E essa pele que pede sol
não tolera isso
esta pele cai
como casca de alho
aos pedaços
Eu sou feita de camadas
como os ogros
e essas camadas são leves
eu as arranco
e perco
Eu as recebo de volta
Eu as cozinho
em banho-maria
Este corpo
come a si mesmo
como um guisado
Este corpo
Eu o cubro de barro
e o enterro.
UM DIA COMO HOJE
Os momentos de clareza são
tão raros, é melhor documentá-los.
Por fim, a visão é feroz,
como tudo importante.
Björk
Ainda reviso as memórias
geradas por algoritmos
Não é por isso que deixam de ser minhas
Eu escolho o que lembrar
Uma bicicleta
Um sorriso sem dente
Minha primeira fantasia feita pela minha mãe
(uma batata de papel marchê e um marcador negro)
Um amigo conta uma piada
Eu rio até fazer xixi
Algumas revistas pornográficas
O freio da língua
Meus erros de grafia
Eu escolho o que lembrar
Um enlace para a primeira música que me assustou.
Meu primeiro ataque
Pistola diante de mim
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Eu tenho tantas memórias mutiladas
em uma página da web
Uma foto da minha primeira casa
Todas as festas naquela casa
Amigas que ficaram nos escombros
Um enlace para uma música que ninguém me dedicou
Eu não escolho o que lembrar
Um dia como hoje
minha mente não tem o que armazenar
todas essas memórias retocadas
Já é tarde
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Talvez no próximo ano
um dia como hoje
não queira lembrar
Parabéns Lucía! Adorei sus poemas!Você traz o dna da família: pessoas conscientes, guerreiras, cheias de amor.
Prossiga no seu lindo caminho!
Gracias por compartir comigo!