Curadoria e tradução de Floriano Martins
Martha Rivera-Garrido (Santo Domingo, República Dominicana, 1961). Poeta, narradora, tradutora, ensaísta e escritora de opinião, com destaque na promoção literária denominada “Geração dos anos 80”. Estudou Ciência Política na Universidade Autônoma de Santo Domingo, foi coeditora da publicação feminista Quetrabajos, do Centro de Pesquisas para a Ação Feminina, CIPAF, e integrou o Conselho Editorial da revista Umbral, publicada pelo que foi o Conselho Presidencial da Cultura. Colaborou em inúmeras publicações nacionais e internacionais e durante vários anos a sua coluna de opinião no Listín Diario, “Enemigo Rumor”. Algumas de suas obras foram traduzidas para inglês, italiano, português, francês, alemão, hindi, bengali e árabe. Em 1996 ganhou o Prêmio Internacional de Novela Casa de Teatro, com sua obra de estreia He olvidado tu nombre. Entre poesía e narrativa, publicou: 20th Century, aún sin título en español y otros poemas (1985). Transparencias de mi espejo (1985), Geometría del Vértigo (1995), He olvidado tu nombre (1999), I’ve Forgotten your name (2004), Mi Rumor, disco com sua voz lendo poemas (2002), Enma, la noche, el mar y su maithuna… (2013), Alfabeto de Agua: Poesía reunida de Martha Rivera-Garrido 1985-2013 (2014), Enma e altriframmenti (2016), Tonó (Una historia de solidaridad sin límites con las Hermanas Mirabal y su familia) (2018), Narraciones de Ella (2022). Proferiu palestras em inúmeras instituições e universidades em seu país e no exterior. Possui uma vasta bibliografia passiva, contida em antologias, ensaios, teses universitárias etc.
ALFONSINA STORNI
Não há vestígios na areia, nem vim descalça. Não tenho o cabelo solto nem com um robe de seda. Não havia nenhum homem chamando, nem enfermeira, ou lâmpada. É apenas a dor surda do nada instalada nas pernas varicosas e nos cabelos de palha; o peito com seu câncer e o delírio latejando na garganta queimada. O relógio parou à uma da manhã e o tempo está se tornando uma espada que esculpe o recife; o silêncio é um caminho de pedra que serpenteia o que agora é meu destino em sua tumba salgada. Ninguém sabe o quão cansada estou esta noite em La Perla, quando levo a mim mesma carregada, congelada na úmida tempestade de Mar del Plata. O vestido costurado ao meu corpo já está flutuando, próximo ao quebra-mar que não o roçará para deixá-lo intacto. Ali o vejo. Os peixes prateados e as formigas que farão meu monumento em Chacarita me mastigam. Lá dirão: O medo é mais podre que a morte que passa pelas suas costas e a minha, a minha morte, caminha de frente. A poucos metros vejo-a dissolver-se nos braços fortes de jovens pescadores que não me amaram, em bandeiras e lendas que não me conheceram viva para me adorarem ausente. Seja. Venha até mim o golpe seco da água nas feridas, a espuma convertida em mármore prematuro quebrando meus ossos. Que nada seja percebido. Irão velar-me viva. Os olhos bicados por aves marinhas e um único pé descalço. Tenho que engolir de um só gole os papéis e nomes com os quais me engasgaram. Contar o segredo de que vim para morrer aqui, na terra, no fogo, no vento, na água. Afogada, eles me disseram. Disseram que afogada.
GIGANTE O AZUL
…a dor da água é infinita.
Gaston Bachelard
Ontem à noite sonhei com um afogado.
Era azul e flutuava de costas no Mar Negro.
Em seus quadris balançavam, um pássaro marinho
e um monte de nenúfares.
O céu agitando o cabelo azul era seu rosto
e nele as Plêiades ignoravam seus feitiços.
Lentamente, o cadáver viajou em direção à sua definição.
Ele era o único sobrevivente do naufrágio.
JUANA INÉS DE LA CRUZ
Diabo, carne e mundo, pensa ela, batendo entre as mãos duas asas emprestadas e um escudo que corta em suas arestas o peito de uma monja cortesã. Sor Juana sentou-se de costas para a garoa desta tarde barroca, cinzenta no seu bosque, firme na esteira que depois anima a passagem de monarcas e tolos; arrependida, zangada… Sua calcinha crua faz uma dobra indecorosa em seu hábito, e o suor de suas coxas tatuadas é feito de tinta e Góngora. Turbulenta, a tarde perde-se nos pássaros pretos que fogem sem juízo, imprudentes, desenfreados, infames, rumo às poucas nuvens que não pingam farpas da epidemia Jerônima. Cheiro rançoso de convento onde se amou à mão, de nudez na testa chamuscada; ali onde foi redimida a culpa exalada em cada confissão e em cada febre emprestada; em cada lombada gravada com legendas douradas. Às seis e quarenta e cinco, naquela biblioteca, a escuridão sufoca a lembrança de tardes exatas e idênticas, adormecidas na fome do jantar precoce em Tepetlixpa. O cheiro amplo de especiarias e as prateleiras empoeiradas se escondem entre as velas, revelando mentiras contadas em silêncio. Ela já disse a pior cansou aos quarenta e poucos anos e é bastarda na vida realíssima e em cada carta preenche mais de cento e cinquenta páginas auto-sacramentais. Confessará o tifo em cada cuspe, diatribes e motivos extras e exagerados. Amou no sino que toca a morte e mistério, Sor Juana. E ali a deixaremos carcomida em estátuas. Ninguém semeou seu pulso em jardins de vertigem. Ela não vendeu sua alma entorpecida a ninguém nem a nada.