Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Elys Regina Zils
Samuel Trigueros (Honduras, 1967). Poeta, narrador, editor. Coordena as oficinas literárias Helecho Poético Internacional e Helecho Poético Zaragoza. Presidente da Asociación Poética Aragonesa Bonhomía. Diretor do Festival Internacional de Poesia de Aragão (FIPAR). Diretor Fundador da Nautilus Ediciones. Atualmente reside na Espanha. Alguns de seus trabalhos publicados incluem: Seguir volando. Antología personal 1992-2021, Una canción lejana, Retrato con una gota de ámbar, Una despedida, Exhumaciones, Me iré nunca, Antes de la explosión, Animal de ritos e El trapecista de adobe y neón.
INSCRIÇÃO
No hay silencio
sino cuando
el Otro habla.
Severo Sarduy
sino cuando
el Otro habla.
Severo Sarduy
Quem entra pelo meu sangue?
Um relâmpago um cavalo
uma voz proibida
uma visão amaldiçoada que sai
como um monstro ferido e dominado
uma mulher
uma escuridão
uma palavra
a inextricável obra de um deus desconhecido?
Cotidianamente tenho atravessado
a onipotência do aborrecimento
e caí
surda sílaba
gota sem tato
sobre a resignada ignorância do mundo.
Um nó é o que ofereço
ou um silêncio
O resto é meu.
Quem puder entrar que entre.
FALCOARIA
Cruza o navio. Cruza a ave
Toca sua sombra o corpo abaixo.
Cruza a sombra da pluma
em meia-vida.
Carne abaixo na sombra.
Acima o vapor tênue dos anos.
O vento empurra a tarde por um penhasco.
Ao fundo a música. Sua espuma escura.
Murtas pelo orvalho dos sonhos subjugados,
jejuns de futuro, sabem
de esperança sem orçamentos atribuídos.
O coração acrescenta sua teimosia ao escavado,
Refuta a profundidade do furto.
A fetidez da miséria
tem a mesma estrutura do perfume.
Alegoriza ambos no fogo
o poema que cobre os cadáveres.
Um falcão entra como um raio. Penetra diariamente
em seu jardim de sangue.
Há música nas nuvens, no entanto.
Há um propósito
nas voltas da pluma ou da navalha.
Contrapicado branco.
A carne é música podre no passado.
Abriga o crâneo a inevitável amargura.
Há tempo.
Passam por alto corcéis de vapor eletrificado.
Ilhas de sombra flutuam no ar,
vertiginosas mortes emplumadas.
Há um projeto de verdade na ascensão dos gerânios.
Perdem aves a sombra abolida nos terraços.
O sol contempla o massacre.
O coração insiste e se enche de esperança.
Falta a concessão do ar para extinguir os raios,
para devolver as gotas do jardim vaporizadas.
A epifania é o aroma de um instante.
Então entra em um catafalco a carniça
e o fisco faz sua jogada.
O sândalo do olhar cai
na geometria morta de sua sombra.
E vou sonhando uma música,
uma estrutura que não acaba,
sob a sombra ferida dos céus,
ao fio de sangue que passa.
ADEUS A TUDO ISSO
Para Robert Graves
Menos florido, sem oliveiras,
Sem brancos perfis de horizonte,
sem a súbita luz do mar, sem o mar,
remando em vão, cheguei ao fim
até a ilha dos meus sonhos
Um continente maior, obscuro, eu deixei.
O coração, cortadas suas amarras,
à deriva na implacável maré dos dias e das noites.
No pequeno navio da minha mão
está o cadáver transparente do passado.
Através do ruído da estática,
chegam notícias de que estive no front,
mas nunca entendi
os delirantes campos de batalha,
até agora que as feridas me devolvem à ilha.
Não há o que corrigir. Foi assim.
Para outros o peso de todas as medalhas, para mim a paz.
Viste despojos pendurados no arame farpado,
mas ignoraste a lenta despedida.
Um pouco de comércio, um pouco de arte,
esticar com vigor o cordão de sangue: vãs tentativas,
vãos todos;
apenas a juvenil candura, anedotas saborosas
ao redor do fogo.
Acima do caminho farei minha morada distante.
Dormirei junto ao rio Escamandro.
Aquela que se aproxima
Se vestirá de vermelho, de púrpura, de azul ou branco puro?
Os ratos vão roer as cordas dos meus arcos, mas nada importará:
a guerra terá passado, a vida terá passado.
Restará apenas, e em paz, enfim, o rústico anfiteatro.
No topo da ilha (ao lado da igreja),
as páginas imaculadas, a silenciosa Albion
-os mais calados e respeitosos leitores
que nunca tive-,
dirão apenas duas palavras:
havia poesia.