Curadoria e tradução de Floriano Martins
Santiago Molina Rothschuh (Juigalpa, Nicarágua, 1958). Depois de viver 23 anos na Rússia e na França, retornou à Nicarágua e publicou Los dominios del aprendiz (2005) e Círculos de alfarero (2008) – este segundo na Costa Rica. Poeta. Bacharel em literatura hispano-americana e mestre em linguística espanhola pela Universidade Michel de Montaigne. É um amante da literatura russa em geral e de Osip Mandelstam em particular. Interessa-se e preocupa-se em estudar e compreender a linguagem das artes plásticas.
OS AEROPLANOS DE KAFKA
As colinas verdes eram nossos campos de aviação
de lá nossas pipas decolavam
subindo acima dos postes de luz
voando sobre colinas cor de puma
planando pertinho dos abutres do vento
tão longe iam que esvaziamos metros e metros de linha
mantivemos o carretel de madeira nos bolsos
Odradek precisa de amigos para conversar à noite
confortava Anne Frank em seu sótão estreito
conversava com Primo Levi em sua cabana em Auschwitz
conhecemos os recantos onde ele vive
em cada casa há um Odradek rolando de esconderijo em esconderijo
sua atemporalidade não é nossa preocupação
sabemos disso apesar de sermos moleques de subúrbio
sabemos que somos filhos de pais que um dia se sentiram
seres insubstanciais
espectadores espremidos no vazio
de uma distância impossível
como Kafka disse que se sentiu em uma tarde de 11 de setembro de 1909
enquanto olhava para o homem cravado no ar
dentro de uma moldura de madeira
talhada como um terno à sua medida
voando como se fosse parte da máquina
parte de um futuro onde será fácil aniquilar
com bombas o engenhoso plano de Ícaro
e nós, seres nômades, fugindo dos arames farpados
comediantes de um palco enclausurado
pensava Kafka um domingo, erguendo a cabeça.
vendo voar os aeroplanos de Brescia.
MADRUGADA
Os abutres não se movem dos galhos secos
impacientes no escuro esperam que cessem os reflexos
a primeira refeição com restos na grama do quintal
o amanhecer apressa o homem da carroça
comerciante de carne fresca e peles que os seleiros
estendem ao sol entre as estacas para o curtume
ele as traz dobradas em sacos de náilon com um pega-moscas
zumbindo ao lado de manchas de sangue
quando passa sob o Guanacaste as rodas silenciam
pela reserva de prantos que não parava de cair a noite toda
forte é o homem que o empurra sobre as pedrarias da rua
do matadouro suburbano ao mercado municipal
onde já tem sua clientela de açougueiros
e matadouros que preveem vacas gordas para amanhã
carne para sopas
carne para grelhar
carne para salpicão
é hora de ir ao mercado antes que não reste uma única costela
talvez os açougueiros cansados depois de afiar
e afiar a faca na pedra de amolar
ainda possam me pesar na balança romana
os sonhos que me traz a carroça da madrugada
toda aquela carniça filetada no Matadouro de Lovis Corinth
O boi esfolado de Rembrandt
ou o pedaço de carne pendurado em um gancho
pintada de vermelho sangue por Chaim Soutine.
O MOLEQUE PREGUIÇOSO DE CHARLEVILLE
“Arthur não tem coração”
dizia a Sra. Vitalie Rimbaud
já cansada da preguiça do filho
quando o moleque preguiçoso de Charleville
cansado da grisalha provinciana e da idiotice do povo
onde tudo é correto as árvores e as flores
fugia para Paris assim que o chefe da estação apitava
sem comprar passagem viajava em um daqueles trens de Monet
com seu jorro de nuvens chegando à estação Saint-Lazare
moleque preguiçoso com cabelo de cometa
sujeito preguiçoso tatuando suas garotas apaixonadas
com beijos sedosos de tarântula no pescoço
garoto preguiçoso traficante de postais de lugares distantes
fotógrafo ambulante em um mundo sem ruas
em sua solidão em Harar representava a si mesmo
com roupas muçulmanas brancas
de pé em um terraço em casa
de pé em um jardim de café
com os braços cruzados em um jardim com bananas
enquanto a Sra. Vitalie Rimbaud “enlouquecia”
sem entender “a longa ausência de Arthur”
ele que além das cidades com avenidas retilíneas
cultivava ampulhetas nos desertos da Abissínia
preenchendo o vazio em seu coração
com as poucas coisas que amou em sua vida
a poeira e as pedras.