Curadoria de Floriano Martins
Tradução de Gladys Mendía
Andrés Eloy Blanco (1897-1955) foi um destacado escritor e político venezuelano. Nasceu em 6 de agosto de 1897 em Cumaná, estado de Sucre. Em 1921, publicou seu primeiro livro de poemas, intitulado “Terras que me ouviram”, e em 1923 ganhou o primeiro prêmio nos Jogos Florais de Santander, em um concurso promovido pela Real Academia Espanhola, com seu poema “Canto à Espanha”. Além de sua carreira literária, também se envolveu na política. Durante a ditadura do general Juan Vicente Gómez, Blanco foi preso várias vezes devido ao seu ativismo político e críticas ao governo. Após a queda da ditadura de Gómez em 1935, Blanco ocupou vários cargos públicos na Venezuela. Foi deputado e, um ano depois, atuou como presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Também foi ministro das Relações Exteriores. Ao longo de sua vida, continuou a escrever poesia e publicou vários livros, incluindo “Barco de Piedra” (1937), “Baedeker 2000” (1938) e “Giraluna” (1955). Suas obras literárias refletem seu compromisso com a justiça social e seu amor pelo país. Faleceu em 21 de maio de 1955 na Cidade do México, aos 57 anos de idade. Seu legado perdura na literatura venezuelana, e sua figura é lembrada como uma das mais importantes na poesia e na política de seu país.
ORINOCO
O teste,
oh meu forte Orinoco, filtrou toda a água.
Tu mesmo,
desordenado,
pródigo,
invasor,
subversivo,
venezuelano,
tu mesmo
levaste as dragas que te roem o fundo,
como teu próprio bico de pelicano.
Te aprofundaste,
cuspiu o freio das barras,
te recolheste em teu desígnio definitivo.
Um dia
carregaste em teus ombros teus jacarés
e abandonaste lentamente as savanas.
Tu mesmo
te empinaste para baixo,
esotérico,
com um profundo respeito à terra
e deste a teus mil braços
aptidão atlética
para receber a criação do transatlântico,
para prenderes às margens
grandes cidades que te caem
como tributárias de vida,
para ser o saguão do mar,
traficado pelos gritos da terra
que se lançam às ruas do mundo.
Denso, populoso,
te caem e te afogam
duras palavras entrelaçadas
em todas as línguas do planeta.
Mas, ainda,
forte Orinoco,
ainda és o Rio Índio,
inconfundível,
na queda,
no bando,
na garça em um pé, que quase voa
e em teu último jacaré
em cujo bocejo
se refugiou toda sua tradição
com silenciosa desembocadura.
Oh meu forte Orinoco,
velha rua bolivariana,
por onde passou sem rumor
o homem que te empurrou com o remo que o empurrava!
Oh meu forte Orinoco, eriçado de frotas!
O teste
que te filtrou as águas e do lado de ontem
deixou o resíduo de sangue e de febre
com eficácia final de adubo
o teste
que te levou a tua máxima estatura interior,
Orinoco,
grande Rio Útil,
primeiro cidadão da Venezuela,
teu teste
nos passou pelo teu próprio filtro.
Eu mesmo
me vi passar por entre minha consciência
e me senti dragado
até a raiz da minha carne verdadeira.
Aqui estou, meu rio sereno,
como lago que anda,
meu velho rio das sete estrelas,
aqui estou.
Meu poema de há 70 anos,
meu velho poema,
frondoso como tuas selvas,
transbordado como tu,
foi cortado no teste,
filtrado,
dragado,
e retorna a ti
na pureza de uma palavra
que cabe em uma mão com folga de sorvo
e que te cai com o sentido caudaloso
de uma gota tributária
voz da língua que trabalha, canta,
o suor salgado dos trabalhadores,
já desde os rápidos, torna-te marinha a água!
AO FILHO DO MEU FILHO
Amigo: Esperavas que te profetizasse
a maravilhosa máquina do ano
2000?
O dinossauro elétrico
O Superdreadnought aéreo
O acumulador inextinguível
O raid a Urano?
Júlio Verne? Marinetti?
Não posso, meu amigo.
Talvez vivais de um modo novo,
sobre uma terra nova. – Talvez um disparo
do teu Mauser Modelo 2000 faça órbita.
Não sei. Mas anuncio-te outra coisa.
Anuncio-te a ti mesmo.
Se meu vaticínio se cumprir,
serei feliz ao meu retorno,
como se tivesse pagado a conta corrente do Apocalipse.
Para o ano 2000, meu amigo, espera-me.
Passearemos juntos sob aquela nobre floresta
que terá ao Sul a tua cidade
e falaremos da minha profecia.
Desfrutaremos uma tarde deliciosa
e voltaremos às ruas,
ansiosos por contemplar o meu presságio.
Não te anuncio o mecanismo milagroso.
Para o ano 2000, só te ofereço, amigo,
isto: O homem humano.
Quando ele chegar,
as máquinas terão um coração, como os seres.
E tu pensarás em mim,
que te ofereci o homem humano.
Desde o dia em que ele chegar,
começarão a contar os anos.
Esperavas mais? Não posso, amigo; tenho sono
e faz duas vidas que não como.
ARQUITETURA
Foram quatro varas de aço,
quatro linhas reluzentes,
cravadas no cume
do granito fundamental.
Quatro postes paralelos,
elásticos,
foram a espinha dorsal
das quatro colunas de concreto,
cujos topos não podíamos divisar,
além das nuvens e dos céus.
Ao redor desse núcleo
cresceu a carne da torre.
Um pensamento arbóreo
rastejou ali em uma hera original.
Os poros de vinte mil janelas se abriram.
Uma humanidade sobreposta
estava lá
como uma caravana vertical.
De cima, via-se
a metade da terra e a metade do mar.
Os radiotelefonistas
ouviram suas próprias vozes,
voltando aos seus lábios ao redor do mundo.
Ganchos para amarrar pequenos potros de ar,
o farol de sinais planetários,
o condensador de nuvens…
Quando se estava no final da torre,
com as janelas cheias de rostos,
a torre começou a vibrar
de vozes,
todas impenetráveis,
conflitantes.
Os idiomas
tropeçavam nos cantos
como becos sem saída.
Babel.
Ninguém entendia ninguém
e toda a torre se dobrou para a terra.
Mas dois calaram de repente
e todos os imitaram.
Os olhos teceram um véu de olhares
molhados de amor e boa vontade.
A torre
endireitou-se novamente.
Sem uma palavra, com a alma nos olhos,
os homens se cruzavam, compreensivos.
Na primeira Babel
ninguém amava.
Se ao menos dois tivessem amado,
teriam ficado em silêncio
e tudo teria ido além dos céus.
HIGIENE DA AGONIA
E agora, meu filho,
meu forte, meu novo filho,
chegou a hora índice,
a hora resumo das horas.
Esta tarde morrerei; esta tarde
selecionada entre quarenta mil tardes
para dedicá-la à minha morte.
Agora, repetirei minha partida,
ensaiada em meus trânsitos pretéritos.
Espero, meu filho,
que esta seja melhor e a outra, perfeita
como borda final do meu plano de luz.
Nesta tarde,
sentar-te-ás em frente a mim
e toda a vida
comentarás com tranquila lembrança
o gesto da minha morte.
Assim, na tua hora
alcançarás uma transição graciosa.
Em tua agonia,
alinha o pensamento à terra,
onde não te enterrarão para sempre.
Afina-te, pois o enterro
será um mergulho
no submundo da Morte,
para sair de novo além do teu tempo.
Te semeiam
para que colabores com o motor do mundo,
que precisa de combustível.
Tua alma será abastecida
e a sabedoria e a luz da tua entidade astral
te serão devolvidas na primeira estação,
capitalizadas.
Agora,
pensa em teu corpo
para a hora de partir.
Teu quarto deve estar
em uma luz amena,
entre um perfume quase suspeito,
sem excesso de flores,
com uma música vinda de fora.
Não evites a vela,
que dá aos olhos abertos
certa claridade de água de consciência.
Não permitas que teus pés se separem;
é grotesco;
morre com os pés juntos. Convida a Morte
com finura de bandarilheiro.
O corpo
caia com graça de descanso;
que o contorno revele
a suavidade de um banhista.
Os braços, sobre o peito,
ou estendidos aos lados,
antecipando uma elegância respeitável
de fantasma.
As narinas, ao afundarem,
te pesquem uma beira de sorriso sensual.
Com as mãos,
segura a despedida como um timão de veleiro.
No minuto supremo,
entrega-te com docilidade
ao trabalho de saltar de plano em plano.
Detém um pouco a alma
na esplanada do peito.
A alma ágil, freada, ali,
como um cavalo branco e trêmulo;
teste o freio, que não adormeça,
e no instante preciso,
espora-te e salta
com um salto limpo
em que fuja
a graça do jovem cavalo
que lustra os tendões quentes
com um suor de campeonato.
O frio,
sinta-o com a fruição
de abraçar uma mulher recém-saída do banho.
Para morrer, teus olhos
guarde-se do estupor vesgo
dos cavalos de estátua.
Veja-te partir
com o olhar horizontal de um tribuno em descanso.
Esse olhar concretiza
toda a épica da agonia.
À tua frente
estará teu filho, em cujos olhos
melhorará a luz da morte perfeita.