Curadoria e tradução de Floriano Martins
A poetisa Jeanette Amit nasceu em Israel (1972), mas cresceu e vive em paz como costarriquenha. Desenvolveu uma formação académica multidisciplinar em Psicologia, um mestrado em Literatura Latino-Americana e um doutoramento em Sociedade e Estudos Culturais. Atuou como professora universitária e editora acadêmica. Autor de três coletâneas de poemas: Testigos del vértigo (1997), Asedios de la luz (2001) y La lucidez del cuerpo (2008), além de múltiplos artigos acadêmicos e do livro didático para educação universitária a distância Lenguaje y realidad social (2014, 2022).
QUEM PODERIA ESCREVER?
A areia se confunde e se faz letra.
Eu penso em mim no mar
e o mar escreve
com caligrafia tão sinuosa
que não acerta o incerto de meu corpo,
não acerta meu nome
apenas chama,
chama repetidamente.
E os ruídos da água
são essa pegada que anda
e torna a me indagar,
desviando o olhar
como quem sente ódio e não o aceita,
quem poderia escrever… escrever a si mesmo?
PALAVRA DE ALUGUEL
Incompleto, de repente meu olhar se alonga
até tocar a tua pele:
leal como uma folha que se deixa escrever.
Vou caindo
onde todos os rostos de teu rosto me veem
e cada um é um vestígio de meu nome.
Caio na altura imprecisa
de uma hora idêntica ao destino,
de uma palavra apenas de aluguel,
de uma casa roubada,
de um animal gemendo na chuva
que vem do limiar de outro silêncio
para sabotar minha intenção de escrever,
para perfurar as paredes que mal me sustentam.
[QUE MEU DESEJO NÃO SEJA VISTO]
Que meu desejo não seja visto,
o fio de sangue que se tece em sua sombra,
sua maldição vermelha como o cheiro de vinho.
Que seja apenas um espinho apunhalando o ar
ou um estalo de crianças abraçando a chuva.
Que ninguém saiba que esse uivo é meu corpo
onde a terra se umedece
aberta em suas duas bocas vigilantes.
Não. Que meu desejo não seja visto,
meu fantasma que canta,
o suor que desce do verbo à carícia,
a pegada que está inundada com meu nome
e então meu corpo quebra,
cavalga à noite,
deixando ali a causa de tudo que gira:
tatuagem indecifrável cortando teu olhar.
AS MÃOS DE MEDÉIA
Eu olho para minhas mãos abertas
a precisa sucessão
um a um
de meus dedos
Recapitulo seus poderes (grandes e pequenos):
a velocidade do punho quando grita,
a sabedoria da gema quando toca,
o mundo que pensa quando escrevo.
Não sou quem fui.
Eu sou outra.
Serei outra mais tarde.
Sem teto, vivo.
Sem dormir, sonho.
Acaricio a cólera
essa coroa que minha debilidade ergue
desgrenhada na memória.
Muitos riram de minha sede
de meus artifícios e visões
enquanto escrevem tragédias e o coro grita:
Mãe selvagem!
Anjo canibal!
Medéia!
Fera que vai caçar sem fome e sem amor
seguindo os caprichos de seu paladar.
Os dados aumentam minha sorte.
Vestido com pedras
Moeda a ser trocada de joelhos.
Ponte de sangue no pacto de reis e ladrões.
Pouco a pouco
Aprendi o que a justiça implica:
uma troca de queixas por vitórias
inventar o herói frio com seu escudo
e encerrar todas as paixões inúteis.
Concessão de pedágio:
pesam e carregam
quem entra ou sai de meu corpo como mulher.
Seus deuses, suas leis e seus filhos
prometem me salvar de meu gênero
em troca de que eu permaneça amordaçada.
É a minha hora de rir!
Eu grito, sinto e escrevo
convoco nômades e escravas,
migrantes explorando umas às outras.
Sobre as minhas mãos abertas
o oceano se estende para elas,
cada dedo quebrado em um rio navegável.
Esta é a liberdade de quem,
negada uma última palavra,
faz um último artifício e lhe chama destino.